Cada vez que o comissário alemão se aventura pela ironia, a plateia retrai-se em sorrisos amarelos e Bruxelas mal disfarça o embaraço. Günther Oettinger já pediu desculpa pelo discurso, filtrado em vídeo para as redes sociais, perante empresários em Hamburgo na semana passada. Mas será suficiente para o assunto ficar encerrado e, em sequência, continuar a ser o candidato a ficar com a pasta do Orçamento no início de 2017?
“Fica bem pedir desculpa, mas a verdade é que tem uma agenda que não é a da Comissão Europeia”, comenta à VISÃO Carlos Zorrinho, eurodeputado socialista, que acompanha de perto a pasta da Economia e Sociedade Digitais entregue ao alemão em 2014.
O vídeo, viral nas redes sociais, mostra como o alemão gozou com os “olhos em bico”, os penteados e o vestuário de uma comitiva de chineses, com a qual tinha reunido na última cimeira UE-China e classificou de “inaceitável” que o acordo comercial da UE com o Canadá tenha ficado refém de uma “micro-região controlada por comunistas”, ou seja, dos 3,5 milhões de habitantes da Valónia. Ainda teve tempo para gozar com as prioridades da política alemã, ao dizer que um dia será “obrigatório o casamento gay”.
A indignação dos visados não se fez esperar. “As declarações revelam um desconcertante sentimento de superioridade enraizado em alguns políticos ocidentais”, reagiu o porta-voz da diplomacia chinesa, Hua Chunying. No Twitter, o líder da Valónia, Paul Magnette, escreveu que as palavras de Oettinger eram “indignas de um comissário europeu”. Numa primeira fase, o alemão manteve o silêncio, mas depois decidiu-se pelo envio de um comunicado a pedir desculpa “por comentários menos respeitosos”.
Os media alemães desvalorizaram o incidente e Angela Merkel renovou a sua confiança no comissário europeu, que pertence também ao partido CDU. O apoio de Berlim política retira qualquer margem de manobra para a Comissão e o Parlamento torna decisões sobre o futuro de Oettinger em Bruxelas. Mas podem travar a promoção prevista para o final do ano. Jean-Claude Juncker tinha sugerido, antes do estalar da polémica, que Oettinger substituísse a búlgara Kristalina Georgieva – que está de saída para o Banco Mundial – na pasta do Orçamento e dos Recursos Humanos e, tal como ela, ser promovido a vice-presidente da Comissão.
“É preciso prudência para ver quem vai assumir o pelouro”, refere José Manuel Fernandes, eurodeputado do PSD, partido que faz parte da família europeia conservadora (PPE), à qual pertence Oettinger. O parlamentar recorda que o alemão, se for indicado para a pasta do Orçamento, tem de se sujeitar a uma nova audição para se perceber se está em condições de assumir essa pasta. “A bola está do lado do Jean-Claude Juncker e espero que não siga com essa proposta. O comissário Oettinger não é a pessoa adequada para essa pasta”, adianta Carlos Zorrinho.
Antes do processo chegar ao Parlamento, no entanto, é o preciso ver qual o perfil do novo comissário que a Bulgária irá enviar para Bruxelas e se saída de Georgieva não servirá de pretexto para uma remodelação mais ampla dos colégio de comissários. O Politico.eu indicava, por exemplo, que Carlos Moedas tem fortes hipóteses de transitar para a pasta da Economia Digital.
Apesar da cautela, José Manuel Fernandes coincide com o colega eurodeputado comunista ao classificar de “inaceitáveis” as piadas do comissário alemão. João Ferreira acrescenta, à VISÃO, que o discurso “revela uma postura de profundo desrespeito pela diferença, claramente racista, bem como conceções anti-sociais, homofóbicas e machistas. São declarações incompatíveis com o exercício de qualquer cargo político”.
As gaffes recentes de Oettinger desenterraram também o rico passado humorístico do alemão de 63 anos, nascido em Estugarda, antigo presidente da região de Baden-Württemberg e que se “internacionalizou” apenas em 2010 com a entrada no Berlaymont. Quem com ele conviveu diz que é “imponderado”, que não foge do preconceito da imagem do “alemão puro”, sem papas na língua e arrogante. O apresentador popular alemão, Claus Kleber, prefere a versão de que Oettinger não tem tempo para a conversa “polida” prescrita pelos “consultores de imagem, defensores do politicamente correto e advogados”.
A bagagem de piadas inclui dizer que Itália, Bulgária e Roménia são países “essencialmente ingovernáveis”, ou chamar “estúpidas” às pessoas que guardam fotos indiscretas na Cloud, ou explicar que fala mal inglês porque não gosta de McDonald´s , ou dizer que preferia “dar um tiro a si próprio” a casar com a populista Frauke Petry, líder da Alternativa para a Alemanha. Recentemente sugeriu que Portugal poderia não escapar a um segundo resgate e que França é um “deficitário reincidente”.
A lista é tão longa que torna legítimo perguntar como foi possível ser aprovado no Parlamento, em sucessivas audições, desde que entrou na Comissão Europeia há seis anos. O também conservador italiano, Rocco Buttiglione, foi chumbado numa audição parlamentar, em 2004, por considerar a homossexualidade um “pecado”. Durão Barroso tinha-lhe atribuído a pasta da Justiça. “É provável que não se façam perguntas sobre liberdade, direitos e garantias a alguém que vai ocupar a pasta da Economia Digital”, explica Carlos Zorrinho. O que é bem provável que também aconteça numa audição para a pasta do Orçamento.