Toda a história de Farida:
A menina que fintou o Estado Islâmico
Contar as suas experiências é um grande esforço para si?
No princípio era, sim. Tem a ver com a nossa educação: nós, raparigas, somos profundamente doutrinadas no sentido de nos envergonharmos quando acontece algo assim. Foi preciso algum tempo para eu compreender que não podia ter feito nada para o evitar. Hoje, sei que fui vítima de um crime.
Esteve vários meses em cativeiro, foi vendida como escrava num mercado por 50 dólares e ficou entregue às mãos do Estado Islâmico. Houve experiências tão terríveis que não consegue esquecê-las?
O pior para mim foi a impotência: a sensação de estar nas mãos daquela gente e da sua ideologia desumana. Nunca esquecerei esse sentimento. E, claro, a incerteza. Não sabia se voltaria alguma vez a ser livre. Talvez permanecesse escrava para o resto da vida. Isso era muito difícil de suportar.
Logo no início do cativeiro, chegou a tentar matar-se três vezes. Preferia morrer do que sobreviver com o estigma da desonra que reina na cultura iazidi? [Na cultura iazidi, uma mulher violada é ostracizada e desonra toda a família]
Sim, na minha cultura fomos educadas assim, é o que sentimos. Era meu dever matar-me. E eu queria realmente consegui-lo. Fiquei desesperada por não ser bem sucedida.
Como ultrapassou esses pensamentos suicidas?
Percebi que o suicídio não serviria de nada. Não conseguiria nada com ele, não evitaria nada, não faria nada andar para trás. Tudo o que me tinham feito estava feito. E se eu escolhesse a morte, daria aos culpados ainda mais poder sobre mim.
E depois durante o cativeiro, teve frequentemente medo de morrer?
Sim, claro. Fui espancada quase até à morte várias vezes, porque a gente do Estado Islâmico queria disciplinar-me. Nunca se sabia o que nos iam fazer a seguir. Se a minha amiga Evin não tivesse cuidado de mim até eu recuperar a saúde, é provável que eu não tivesse sobrevivido aos espancamentos.
Chegou a questionar Deus ou a pôr em causa as suas crenças?
Nunca. Foi a minha crença em Deus que me manteve mentalmente forte. Foi isso que me deu a força para sobreviver. Até porque acredito fortemente na justiça divina.
Encontrou, nos acampamentos ou cidades controladas pelo Estado Islâmico, alguns ocidentais entre os combatentes?
Sim, existiam vários europeus entre os soldados do Estado Islâmico, mas eu nunca os conheci pessoalmente. Os homens no campo militar vinham de muitos países diferentes.
Via diferenças no comportamento dos homens mais velhos e mais novos?
Não sei dizer se os mais velhos ou mais novos eram piores – eram todos brutalmente cruéis. Mas por várias vezes senti que alguns dos homens mais novos tinham sofrido uma verdadeira lavagem cerebral ou atraídos para a organização com falsas promessas. Muitas vezes veem-se em situações difíceis, porque uma vez lá dentro, já não há saída.
Do que viu, o que há do Islão no autodenominado Estado Islâmico?
Nada. Eles tentavam impor-nos as suas crenças religiosas e até nos davam aulas. Mas muitas vezes tínhamos discussões com eles, argumentando que o que faziam e o que tentavam ensinar-nos não tinha nenhuma correspondência no seu livro sagrado. Eu sei árabe e consigo compreender facilmente a diferença entre o que está escrito e os atos daqueles monstros. Matar pessoas ou mantê-las como escravas não pode ser um objetivo do Islão.
Ainda se sente ameaçada pelo Estado Islâmico?
Sim. Vivo com o medo. Tornou-se parte de mim. Quando se passa por uma tal experiência, esse sentimento nunca mais desaparece. Mas acima de tudo, preocupo-me com os meus parentes que ficaram no Iraque. Ainda não sei onde o meu pai e o meu irmão estão, não sabemos sequer se estão vivos. Se ainda estão com eles, temo pelo pior. É por isso que não posso dar a cara neste livro.
Sente que esta situação a tornou mais forte? Que lições é que esta experiência-limite lhe ensinou?
Não sei se me fez mais forte… Eu sobrevivi, mas estou magoada física e psicologicamente vai demorar muito tempo até que consiga recuperar. Mas uma coisa aprendi: acredito que conseguimos superar a mais terrível das situações mantendo a nossa fé interior.
Quão difícil é hoje ter de lidar com o preconceito e o estigma?
É muito, muito difícil. Ninguém fala abertamente sobre o assunto. Mas, como membro da comunidade, sei o que os outros pensam e oiço as suas palavras, ainda que não seja permitido pronunciá-las. Mas está sempre subentendido. As mulheres mais velhas mostram-se muito preocupadas com as jovens: acham que as nossas vidas estão arruinadas para sempre.
A mudança para a Alemanha, como refugiada, ajudou a ultrapassá-lo?
Na Alemanha é tudo diferente. As pessoas pensam de forma completamente diferente. Mas eu sou, continuo a ser, uma iazidi. A minha família e os nossos amigos são iazidi, e eles não mudam de um dia para o outro.
Como foi a sua integração na Alemanha?
Muito boa. Os europeus são muito meus amigos. Estou-lhes muito grata por poder viver aqui.
Que sonhos e expetativas tem para o seu futuro?
Quer regressar ao seu país ou tenciona ficar a viver na Europa? Quando vivia na minha aldeia no Iraque, queria ser professora de matemática. Mas hoje sinto que para nós não há caminho de regresso. Vai ser sempre demasiado perigoso. Quem sabe consigo ser agora professora de matemática na Alemanha.
Como é a sua vida no dia a dia? Vive como uma “normal” rapariga de 19 anos na Europa?
Sim, claro. Tenho um smartphone, uso as redes sociais e adoro música, sempre gostei. A única diferença é que sobrevivi a algo verdadeiramente terrível. Mas tento não pensar demasiado nisso. Não quero deixar-me abater. Porque isso seria como se os criminosos tivessem conseguido vencer. Não lhes concederei esse triunfo.