“Chamo-me Mahar Ali, tenho 25 anos. O meu avô nasceu na Palestina e tornou-se refugiado na Síria em 1948. Os meus pais nasceram em Damasco. Nasci numa família de classe média baixa que, a partir de 2000, se tornou numa família de classe média. Os meus pais são professores primários. Tenho uma irmã e um irmão, mais novos do que eu.
Cresci numa zona chamada Nahir Eshih, à volta de Damasco. Depois mudei para Yarmouk, na periferia da capital, onde vivem muitos sírio-palestinianos e onde os meus pais compraram o seu primeiro e último apartamento. Essa zona tornou-se muito sensível durante os primeiros dias da “revolução” e cedo se tornou território de guerra civil, com combates intensos. Tivemos de mudar seis vezes para os subúrbios, para casas de amigos e familiares. Deixamos Yarmouk definitivamente em dezembro de 2012 porque ficou oficialmente sob controlo da oposição e as forças governamentais iniciaram uma operação massiva. A zona ficou completamente cercada. Foi o pior período para toda a gente em Damasco, pois tudo começou a mudar. As vidas que tínhamos acabaram e as nossas perdas, humanas e materiais, acumularam-se.
Estudei Economia na Universidade de Damasco entre 2008 e 2012. Nesse ano, comecei a trabalhar para o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Isso permitiu-me alugar, no início 2013, um apartamento para mim e para a minha família. No início, os meus pais ainda conseguiram manter algumas poupanças. Mas foi apenas temporário. Com o aumento da inflação e do custo de vida, começaram a secar as poupanças. De quem as tinha, claro.
No CICV, comecei como assistente administrativa, mas fui assumindo mais responsabilidades até sair, em 2014. Saí por muitas razões, mas essencialmente porque fui aceite num curso de mestrado no âmbito do programa Erasmus, graças ao apoio do meu supervisor na Cruz Vermelha e do meu professor na universidade.
Foi um prazer conhecer e trabalhar com o Mário Águas. É eficiente, calmo e foi um bom suporte para mim. Admiro o seu compromisso e o seu amor pela Síria e pelos sírios.
Saí do meu país porque o programa do curso preenche as minhas ambições de carreira. Mas tinha também tantas pressões pessoais (perdas de entes queridos, guerra, instabilidade, falta de visão de futuro), que aquela foi uma boa oportunidade para sair e ganhar um pouco de distância. Primeiro fiz um semestre em Berlim. Depois fui
outro semestre para a África do Sul. E agora estou a fazer o terceiro e quarto semestres em Paris.
Estava com um grupo de amigos de todo o mundo, em casa de um deles, quando começamos a receber mensagens sobre os atentados. Tivemos de ficar onde estávamos toda a noite. Fiquei chocada e triste pelas vítimas. E hoje ainda estamos todos a processar o que aconteceu.
O que se passa na Síria ensinou-me dois mecanismos de defesa para enfrentar a tristeza e o medo. Primeiro, o humor negro. Segundo, a negação. Estes mecanismos não são necessariamente corretos porque as emoções tendem a ficar para trás e depois “batem” quando menos esperamos. Felizmente todos conversamos um pouco sobre isso naquela noite.
O meu primeiro pensamento foi: como é que as famílias das vítimas vão superar esta tragédia? Eles são os únicos que realmente terão de viver com isso para o resto da vida. Não serão os políticos, não será a França, não será Paris.
O meu segundo pensamento foi: o que vai acontecer-nos a seguir? O que vai acontecer aos sírios a seguir? Só espero que nem todos os árabes, muçulmanos e sírios sejam olhados da mesma forma.
Não me preocupei comigo. Preocupei-me com as pessoas que estão ansiosas para deixar a Síria, pessoas que viviam em circunstâncias muito piores do que eu e não tiveram a oportunidade de entrar num avião, como eu fiz!
Não me senti desconfortável. Mas os primeiros dias do ataque deram cabo de mim. Fui incapaz de explicar o facto de não me estar a sentir bem, mas depois percebi que isso seria, talvez, porque não quero viver noutro estado de emergência, com medo ou terror.
A minha experiência com o CICV ensinou-me a tentar ser tão neutra quanto possível (não é 100% possível). Além disso, a minha experiência universitária ensinou-me a olhar mais para as causas antes de julgar. De qualquer forma,
ambas as experiências ajudaram-me a tentar reformular as minhas reações emocionais. Não é fácil gerir sentimentos, especialmente para quem viveu circunstâncias anormais num período relativamente curto de tempo.
Os políticos dirão qualquer coisa que possa ajudá-los a ganhar ou manter uma base popular. Os ataques terroristas e a crise dos refugiados foram correlacionados e isso vai gerar mais controlo sobre quem entra na Europa. Mas isso não significa mandar embora todos os refugiados e pintá-los todos com o mesmo pincel (e nem sequer falo da islamofobia). Quero expressar a minha admiração a todos os povos europeus que defendem, mesmo após os ataques, que se devem acolher refugiados.
Ainda tenho um monte de amigos e família em Damasco. Os meus pais, alguns dos meus melhores amigos, os meus colegas do CICV. Ironicamente, todos me mandaram mensagens na noite dos ataques em Paris para se certificarem de que eu estava bem! Deveria ter sido eu a preocupar-me com eles e não o contrário.
Às vezes é difícil lembrar como estávamos a viver há quatro anos. É tudo tão recente, mas tanta coisa aconteceu que sinto que passaram dez anos. Yarmouk era o melhor lugar para caminhar à noite. As lojas, o cheiro do café na rua, os eventos culturais, as jovens adolescentes a namoriscar com rapazes. A vida que tivemos golpeia a minha memória.
Lembro-me também das pessoas que perdi durante o conflito. Aperto a minha memória para recordar as suas vozes ou os seus sorrisos e censuro-me por não ser capaz de corrigir os pequenos erros que cometi com eles.
Viver na Europa também é bom, especialmente para mim que viajei bastante no ano passado. Mas é diferente. Há quatro anos, qualquer pequena coisa me fazia feliz ou me surpreendia. Mas agora há um pedaço do meu coração que se foi. Sinto-me feliz, mas não é a mesma coisa.
Tive o privilégio de viver em Damasco toda a minha vida apreciando a beleza e a calma da cidade. Isso não significa que as pessoas, noutros lugares, estivessem satisfeitas com as suas vidas. É legítimo que reclamem uma vida melhor. Mas ninguém nos ajudou a alcançar esse objetivo. O mundo inteiro esteve contra as reivindicações dos sírios em 2011. E para tornar tudo ainda pior, inundaram o país de armas e estas foram parar às mãos das pessoas erradas, nas ruas.
A destruição do meu país não deve fazer-nos esquecer que, em 2011, as pessoas demonstraram o que queriam pacificamente. Pensaram que era muito simples dizer ”queremos liberdade”. Mas, aparentemente, a liberdade é um produto caro no mundo capitalista. Não é para todos.
Discordo que se travem guerras aleatórias onde as vidas civis não contam. Não vou discutir a questão do ISIS [Daesh], quem o sustenta, quem o financia. Mas em relação aos ataques de Paris, considero que parte do problema precisa de ser resolvido na própria França. Sei que alguns muçulmanos sofreram uma lavagem cerebral e são muito hostis ao Ocidente, mas isso significa que há um problema de integração que precisa ser resolvido na França e isso deve ser a solução a longo prazo. A curto prazo, a solução é vigiar de perto todas as mesquitas radicais na Europa, que também exportam terroristas para o Médio Oriente. As estatísticas mostram que, no ano passado, metade dos combatentes do ISIS [Daesh] não eram sírios ou iraquianos.
Para ser honesta, a maioria das pessoas ocidentais que conheci são de esquerda ou apenas agradáveis. Têm um bom conhecimento da história da região para não culpar sírios e muçulmanos da Síria pelos problemas do mundo.
Nunca enfrentei qualquer tipo de discriminação na Europa. Quero dizer, há sempre alguns ignorantes que têm comentários estúpidos, mas isso não conta. É muito importante saber-se História e compreender as culturas de outros povos. A melhor maneira de resolver todo o tipo de tensão é abrirmo-nos a outras opiniões e trabalhar duro para ver o fundo de uma pessoa, ainda que a sua opinião seja diferente. Dar às pessoas um espaço para expressar opiniões, não importa sobre o quê, seria importante.
Na Síria, os meus fins de semana estavam cheios de atividades sociais. Rindo, ignorando que há uma guerra. Evitávamos falar sobre política porque isso significava que podia ser detida, ferida ou até mesmo desaparecer. Sinto falta de tomar café com a minha mãe de manhã. Da mistura de cheiro da minha mãe e do cheiro de café em suas mãos. Sinto falta de língua árabe, das pessoas no meu trabalho, dos meus chats à noite com os amigos. Sinto falta da cidade velha de Damasco. Não perdia tempo a pensar no futuro porque ”viver o momento ” foi o meu lema na Síria. Agora, estou de volta à vida real, onde as pessoas planeiam o futuro.
Paris é uma cidade louca. É incrível, com um monte de coisas para fazer, mas tenho tão pouco dinheiro. Vou às aulas de manhã e à tarde. Por vezes, estudo à noite, aprendo a cozinhar ou janto com os amigos. Estou também a dar aulas de inglês e árabe para ganhar dinheiro extra. Tenho uma bolsa de estudos e também ajudo os meus pais na Síria. Gosto de política, literatura árabe (romances, poesia), de dançar salsa, de música árabe alternativa e de jazz ocidental. Em Paris, passo a vida a ouvir Edith Piaff. “