Há a pequena provocação, comparável ao puxão de camisola matreiro ou à finta artística para quebrar o ânimo do rival. Não faltam tiradas para cartão amarelo, réplicas de uma canelada mais ríspida ou de um empurrão descarado. E, no calor do jogo, aparecem excessos verbais facilmente confundidos com entradas a pés juntos para magoar. O “marreta”, o “burgesso”, o “urso” e outros que tais.
Como o futebol a sério, nem todos os comentários são bonitos de se ver quando se juntam num estúdio de televisão três conhecidos adeptos de Benfica, FC Porto e Sporting. Em vez da bola, saltitam palavras que vão do argumento mais razoável à demagogia barata, do humor ao insulto, da ironia à gritaria. Mas, por alguma razão – leia-se audiências –, o formato resiste há mais de 20 anos em Portugal e nenhuma estação abdica de ter o seu programa. Médicos, arquitetos, fadistas, políticos, escritores, empresários, músicos, realizadores, jornalistas, advogados e até o sexólogo Júlio Machado Vaz, a socialite Cinha Jardim ou o padre Jorge Duarte convertidos em defensores da honra dos clubes, numa espécie de comunhão futebolística multifacetada. Tão diferentes e tão iguais aos fiéis do outro lado do ecrã.
“A única diferença para as discussões de futebol que temos com os amigos é que são transmitidas em direto na televisão”, compara o advogado Rui Gomes da Silva, sem complexos em assumir que veste a pele de fanático enquanto representante do Benfica n’O Dia Seguinte, líder de audiências na SIC Notícias. “O futebol é paixão. Se for visto de forma intelectual, parece cinema.”
Já houve quem saísse a meio do filme, com a emissão a decorrer, incompatibilizado com outros atores em cena. Mas também se vê rivalidade saudável, depende dos dias e dos intervenientes. Na geração atual, se é verdade que Manuel Serrão não cumprimenta José Pina nem Pedro Guerra no Prolongamento (TVI24), Rui Oliveira e Costa, Miguel Guedes e João Gobern, do Trio d’Ataque (RTP3), são capazes de ir comer um prego e beber uma cerveja a seguir ao programa – e “falar de tudo menos de futebol”.
Há dias, o ex-futebolista Fernando Mendes afirmou que um dos grandes rivais do Sporting paga 100 mil euros por ano aos seus comentadores. Mas, pelo menos os seis com quem a VISÃO conversou, nem sequer aceitam a ideia de serem vozes dos clubes. O guião que levam para estúdio, garantem, é pessoal e inalienável. “Se me pergunta se numa época inteira não há um almoço ou uma conversa com dirigentes do Sporting, digo-lhe que há umas três vezes. Antes de cada programa, nem pensar, isso não existe”, diz Rui Oliveira e Costa. “Nestes cinco anos, devo ter contactado o Benfica, por minha iniciativa, três ou quatro vezes”, adianta João Gobern, perentório: “Não há reuniões estratégicas nem nada disso.”
Mais ou menos polémicos, os adeptos comentadores recebem entre mil e três mil euros por mês (€250 a €750 por programa), pagos pelas estações de televisão que os contrataram. E ninguém lhes dá lições de amor à camisola. Por vezes tão mal compreendido, que são alvo de ameaças de morte e agressões. Casos de polícia.
Da gargalhada fácil à má-língua
“Ó palhaço, diz lá agora que não é falta.” José Pina não gostou de ouvir Manuel Serrão dirigir-se a si nestes termos, “aos gritos”, a propósito de um lance ocorrido no Sporting-FC Porto, em agosto último. Mas na segunda-feira seguinte levou narizes vermelhos para todos, “numa de fair play”. Afinal, já eram amigos antes de coincidirem no Prolongamento e, depois do programa, o humorista afeto ao Sporting costumava dar boleia ao empresário portista – que pernoita em Lisboa e regressa à Invicta num dos primeiros voos da manhã. Só que o segundo truque na manga de Pina não teve o mesmo efeito apaziguador. Ao lançar para a mesa o passado juvenil de Serrão como sócio do Benfica, o veterano do comentário televisivo, iniciado na Noite da Má-Língua, soltou a dita: “O meu amigo é um palhaço, e além de aldrabão é mentiroso.”
Não é que Manuel Serrão não tivesse sido filiado no clube da Luz (“quando estudei em Lisboa, vigarizei o Benfica, fingindo que vivia no Porto, para poder ser sócio correspondente e ir ver jogos de borla”), mas sentiu o golpe como uma tentativa “desonesta” de colar a sua simpatia clubística ao maior rival do seu Fê-Cê-Pê. Pior ainda, alega, José Pina conhecia as suas motivações. “Até se retratar, não me vê mais os dentes”, diz sobre o sportinguista, para quem o episódio não passou de um despique verbal, daqueles que dentro de campo se resolveriam com um cartão amarelo para cada lado.
A Pedro Guerra, Serrão não fala “desde sempre”. E por não gostar de se ver a elevar os decibéis com o diretor de conteúdos da Benfica TV, para repetidamente o mandar calar, adotou nos últimos meses uma atitude de indiferença perante os rivais de conversa: “Dou a minha opinião e eles ficam os dois a falar sozinhos.” Num programa recente, foi filmado a fechar os olhos e noutro perguntou se não haveria no estúdio uma cama para se deitar, quando Guerra sugeriu a possibilidade de ficar o tempo todo a perorar sobre determinado assunto.
Longe vão os tempos de gargalhada fácil. Se o sportinguista Eduardo Barroso lhe chamava “gordo”, ria. Se o acusava de ser “intelectualmente repelente”, ria ainda mais. E ao benfiquista Fernando Seara tanto podia oferecer um melão gigante como receber dele um stick de hóquei em patins, mimos simbólicos das conquistas de uns e dos desaires de outros. “Com eles levávamos as coisas a brincar. Mas continuo a gostar do que faço e era o que mais faltava se deixasse por causa da má educação de outros.”
Quando a corda parte, em direto
Não seria argumento original abandonar um programa. Na pressão do direto, e perante as “bocas” e as derrotas, é preciso estofo de atleta, controlo emocional. “Aquilo é alta competição”, assegura José Pina. Há ano e meio, Eduardo Barroso ameaçou Pedro Guerra, então contratado pela TVI há escassos três meses, com um ajuste de contas fora do ar, que nunca chegou a acontecer. Em vez disso, o conhecido cirurgião bateu com a porta em direto. O mesmo passo que o agora presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, deu em 2010 na RTP, quando o cineasta benfiquista António-Pedro Vasconcelos insistiu em comentar as escutas do processo Apito Dourado, consideradas ilegais. Já com Rui Gomes da Silva e Dias Ferreira, na SIC, o vermelho e o verde fizeram faísca durante mais de dois anos. Sentavam-se lado a lado, até que, certo dia de 2013, o representante do Sporting virou costas ao do Benfica. Ao ser chamado à atenção pelo moderador Paulo Garcia, saltou a tampa a Dias Ferreira e foi-se embora.
“Passe à frente”, diz-nos Gomes da Silva, sobre o único interveniente com quem não conseguiu manter uma “relação urbana” desde que se estreou n’O Dia Seguinte, em 2010. Com os restantes, garante, o que é dito em estúdio, fica no estúdio. Tanto que tem ideia de José Guilherme Aguiar e Rogério Alves terem “passado das marcas” uma vez, mas é tão vaga que nem se recorda, “o que significa que não foi nada de relevante”. De vez em quando, janta “com o Zé Guilherme”, que conhece dos tempos de faculdade e com quem se cruzou também na política, em órgãos nacionais do PSD. “Apesar de ter esse defeito intrínseco de ser do FC Porto”, sorri o ex-dirigente do Benfica, “é um bom amigo”.
A confraternização longe das câmaras é mais frequente no Trio d’Ataque. Depois da emissão, chegam a ir os quatro, comentadores e o moderador Hugo Gilberto, saciar o apetite, embora nos últimos tempos com menor regularidade. “A culpa é minha”, acusa-se João Gobern, que não conduz e tem de apanhar táxi para a Póvoa de Varzim, onde mora.
Para Rui Oliveira e Costa, a deslocação é maior, mas o administrador da Eurosondagem vai de comboio no domingo, dia do programa, e só volta a Lisboa na manhã de segunda-feira. Num desses regressos, encontrou Gobern na mesma carruagem e saíram juntos em Santa Apolónia. Sporting e Benfica em amena cavaqueira – ou eternos rivais em flagrante delito? “Isto eu logo vi. Discutem tanto, discutem tanto e depois são todos amiguinhos”, ouviram de alguém que ia a passar.
Nem sempre são assim tão “amiguinhos”, já se viu. Em tempos, o próprio Rui Oliveira e Costa, veterano deste formato televisivo que Gobern e Miguel Guedes veem como um “senador”, chocou de frente com António-Pedro Vasconcelos. Davam boleia um ao outro no Alfa Pendular e jantavam juntos no Porto, até que duas investidas do realizador, em direto, ditaram o fim do ritual. “Numa, disse que eu não tinha autoridade moral sobre o que quer que seja e, noutra, relatou conversas particulares”, explica o sportinguista. “Passou dos limites.”
As abordagens simpáticas e os casos de polícia
Com os adeptos, os exageros podem atingir proporções bem mais graves. No caso de João Gobern, em forma de pedras atiradas para o quintal e ameaças de morte deixadas na caixa de correio ou enviadas por e-email e telemóvel. Acontecimentos que o fizeram “perceber as dificuldades de ser um benfiquista no Norte”, logo após ter sido filmado a festejar um golo do Benfica, na RTP Informação, em 2012 – um descuido que lhe custou a saída da estação pública, à qual regressaria meses depois para integrar o painel do Trio d’Ataque.
Ainda que não leve muito a sério os “recados” anónimos que o visam a ele, do género “a gente apanha-te na rua e passa-te com o carro por cima”, o jornalista ficou mais preocupado “quando as ameaças chegaram à família”. Nada que se concretizasse, porém, como aconteceu a Rui Gomes da Silva, outro benfiquista do Norte mas com vida em Lisboa. Numa ida ao Porto, foi agredido, “sabe-se por quem”, outras pessoas viram e mesmo assim o processo foi arquivado. “Com medo, ninguém quis depor”, atalha quem já se habitou a viver com as ameaças sem rosto, remetidas para o seu e-mail profissional: “São-me indiferentes, cão que ladra não morde. As pessoas que ameaçam são cobardes.” Nunca apresentou queixa delas, mas arquiva a correspondência que lhe promete violência física.
No trato pessoal, as abordagens são simpáticas. Há, hoje, poucas razões de queixa, além de um insulto aqui e ali. José Pina está convencido que “as pessoas já perceberam que é só um programa de televisão” – Manuel Serrão, pelo menos, nunca mais precisou de ser escoltado para fora de uma discoteca, como naquela noite dos anos 90 em que foi com Eduardo Barroso à Capital, na 24 de julho, ainda nos tempos efervescentes d’Os Donos da Bola.
Para Miguel Guedes, um dia não é dia sem ser abordado no supermercado, no restaurante ou onde quer que esteja. Também lhe falam de música e política, mas o futebol predomina. “Toda a gente tem um comentário a fazer, é como o estado do tempo”, nota o vocalista dos Blind Zero, garantindo que, “para lá de 99% das vezes, as pessoas são muito afetivas, mesmo os adeptos adversários”.
Já nas redes sociais, contrapõe o portista, “quem nunca foi difamado certamente não respira o ar”. É quase uma impossibilidade para quem faz opinião. Quando abusam no seu mural, bloqueia. “Admito todo o tipo de comentário, mas não venham para o meu quintal chamar-me nomes.” Muito menos ameaças para o telemóvel. “Quando há que colocar as autoridades em campo, coloco-as em campo.” Aconteceu apenas uma vez, perante a insistência dos contactos. “É aborrecido, mas não tira o sono a ninguém.” Ossos de um ofício que está para durar.
Um a um
Rui Gomes da Silva
Idade: 58 anos / Nº sócio: 1812
Contactos com o clube: Diários quando era dirigente, deixaram de acontecer desde as eleições de outubro. “Mas tudo o que digo é sempre por iniciativa minha, agora e antes”
Como se prepara: Redes sociais, jogos do Benfica e resumos dos rivais; vê as capas dos jornais, usa os alertas Google para informação que lhe interessa e o resto é “de memória”
Caricato: Com Guilherme Aguiar, fez as despedidas d’O Dia Seguinte numa noite em que o moderador Paulo Garcia ficou sem voz
Jogou? Com amigos. Santana Lopes, Durão Barroso e Paulo Portas faziam parte do grupo que, aos sábados, durante mais de 20 anos, se reunia num campo de cimento na Docapesca, em Belém, e disputava um torneio na Praia das Maçãs
Rui Oliveira e Costa
Idade: 69 anos / Nº sócio: 17 197
Contactos com o clube: “Umas três vezes por época. Antes de cada programa nem pensar, isso não existe”
Como se prepara: Jornais (em média um desportivo por dia), televisão, rádio; vê os jogos dos três grandes; por vezes revê o programa
Caricato: Foi à casa de banho e não lhe desligaram o microfone. “Mais caricato só se tivessem levado a câmara atrás”
Jogou? No FC da Angónia, durante o serviço militar em Moçambique. “Era uma filial do FC Porto, com equipamento à FC Porto.” E ainda hoje dá uns toques, com amigos, no Grupo Desportivo do Linhó
Manuel Serrão
Idade: 57 anos / Nº sócio: 4517
Contactos com o clube: “Nunca tive e ainda bem. Conhecem-me desde pequenino e sabem que era pior se me quisessem influenciar e, portanto, inteligentemente, nem tentam”
Como se prepara : Sempre foi leitor compulsivo de jornais e revistas e obriga-se a ver os jogos dos outros grandes, além do FC Porto
Caricato : Quando o Benfica perdeu a Taça de Portugal para o Vitória de Guimarães, em 2013, foi a uma loja chinesa e apareceu no programa disfarçado de D. Afonso Henriques
Jogou? Acima de tudo, futsal. Disputou uma meia-final da Taça de Portugal, ao serviço do clube Dragões 85, que era apoiado pelo Comércio do Porto, onde foi jornalista
José Pina
Idade: 54 anos / Nº sócio: 6779
Contactos com o clube: “Quando há notícias contraditórias, telefono para esclarecer. E, de vez em quando, ligam-me se há alguma notícia falsa. Reuniões estratégicas semanais, vais dizer isto e aquilo, isso não existe”
Como se prepara: Jornais e jogos dos três grandes; revê sempre o programa; à segunda-feira fica em casa, a estudar as mensagens que pretende passar e os truques de humor que gosta de fazer; escreve notas no portátil que leva para o estúdio (sem acesso à internet)
Caricato: “Às vezes, chego em cima da hora e maquilham-me entre os intervalos da chuva, quando a imagem está noutros intervenientes. Como sou careca, demoro mais a pôr os brilhos”
Jogou? Com amigos, na juventude
Miguel Guedes
Idade: 44 / Nº sócio: 59 312
Contactos com o clube: Por sua iniciativa, quando tem uma dúvida que considera importante esclarecer. “Todos nós temos acesso a esses canais e dizer o contrário é falso. Do lado contrário, de uma forma formal, nunca houve nada.”
Como se prepara: Lê os jornais que já lia e artigos de opinião na internet; vê os jogos dos três grandes e toma notas “naqueles caderninhos pretos”, “umas seis páginas por programa”, com “letra minúscula”
Caricato: Dá e leva caneladas por baixo da mesa, que “funcionam como forma de açucarar uma pequenina agressão verbal” ao parceiro do lado. “Naquela: toma lá que já aprendeste”
Jogou? Só na escola
João Gobern
Idade: 56 anos Nº sócio: desistiu no dia 1 de outubro de 1978, quando se tornou jornalista
Contactos com o clube: “Em cinco anos, devo ter contactado o Benfica, por minha iniciativa, três ou quatro vezes. Não há reuniões estratégicas nem nada disso”
Como se prepara: Jornais (desportivos e generalistas), livros e jogos dos três grandes
Caricato: “Consegui a proeza extraordinária de defender que Gibraltar era em África”
Jogou? Foi federado nas camadas jovens do Carcavelos. “Mas nunca tive jeitinho, era daqueles que, se a bola passava, não passava o homem”
artigo publicado na Visão 1256 de 30 de março