Antes da chegada de Miguel Moura e Silva à Autoridade da Concorrência (AdC), podiam contar-se pelos dedos de uma mão os processos judiciais por práticas de concertação de preços, vulgo cartel, que existiram em Portugal. E os dois únicos casos que seguiram para tribunal, além de terem coimas muito baixas, acabaram por prescrever. Quando, em setembro de 2004, assumiu o cargo de diretor do departamento de práticas restritivas, que investiga as práticas de concertação de preços, o paradigma mudou. Logo nesse ano começaram a ser investigados vários setores de atividade e uma simples notícia de um aumento generalizado de preços era suficiente para que a AdC iniciasse os procedimentos para descobrir a existência de cartel. Afastado do cargo em 2013, foi agora chamado pelo ministro adjunto e da Economia, Pedro Siza Vieira, para integrar o conselho de administração, cargo que assumiu no passado dia 1 de agosto.
Um dos primeiros grandes casos que teve entre mãos envolveu algumas das maiores empresas farmacêuticas mundiais, como a Bayer, a Johnson & Johnson e a Roche. Mas nem esse poder o demoveu de avançar com uma investigação que acabou por resultar em multas de 16 milhões de euros a cinco multinacionais do setor. “Para ele, este caso era mais do que apenas uma caça ao cartel. Era a possibilidade de mostrar a existência de uma nova estrutura de combate à manipulação dos preços em Portugal”, diz um antigo colaborador daquele departamento. Na altura, o valor das coimas foi considerado muito exagerado, mas Miguel Moura e Silva defendeu, desde muito cedo, a aplicação de coimas elevadas às empresas, bem como de multas para os gestores envolvidos nessas práticas, como forma de prevenir futuros atos ilícitos de cartelização. Nos dez anos em que esteve neste departamento, aplicou multas superiores a 50 milhões de euros.
Efeitos dissuasores
Aliás, neste período, aproveitou todos os processos para sensibilizar os juízes para a necessidade de se aplicar coimas elevadas neste tipo de práticas, defendendo que “para ter uma prevenção realmente efetiva, temos de ter sanções dissuasoras”. Em média, as práticas de cartel levam a um incremento de preços no mercado entre 15% e 20%. Nos países onde as autoridades são mais eficazes e aplicam multas mais elevadas, o preço excessivo fica-se pelos 5%. Naqueles onde existe menos eficácia, o excedente tende a aumentar para valores muito superiores, por vezes até 40%.
“A cartelização é algo que nunca irá desaparecer devido à enorme pressão que existe sobre os gestores para gerarem lucros no curto prazo. E essa pressão leva a que, por vezes, recorram ao caminho mais fácil para obter resultados imediatos. Por isso é importante a existência destas medidas dissuasoras”, justifica Miguel Moura e Silva. Foi também do seu tempo a introdução do Programa de Clemência, que passou a dispensar ou a reduzir as coimas para os infratores que denunciem essas práticas. Aliás, foi com base num destes programas que a Concorrência da União Europeia conseguiu desmantelar o chamado cartel dos camiões, que envolvia MAN, Volvo/Renault, Daimler, Iveco e DAF, e impor uma multa de 3,8 mil milhões de euros pela prática de concertação de preços ao longo de 14 anos.
No mesmo ano em que a AdC averigua as farmacêuticas, investiga um grupo de empresas de moagem que combinavam os preços a que vendiam a farinha para pão e massas, levando a um aumento generalizado do preço do pão em todo o País. Após vários meses de averiguações, a AdC conseguiu levar o caso a julgamento e aplicou uma coima exemplar de nove milhões de euros. Nos dez anos que se seguiram, levou inúmeros casos de concertação de preços a julgamento, desde o cartel do sal até ao dos envelopes, passando pelas escolas de condução e por muitos outros setores de atividade que, até àquela data, viam no sistema judicial português alguma permissividade para este tipo de práticas.
Os casos desmantelados foram tantos, que no seio da AdC já lhe chamavam o “caçador de cartéis”. Embora alguns deles tenham acabado por prescrever, durante todos os anos em que esteve à frente do departamento de práticas restritivas, a AdC apenas perdeu, por razões substantivas, um processo de cartel: o que acabou por ficar conhecido como Caso dos Helicópteros (ver caixas).
O afastamento
E nem a banca escapou ao crivo de Miguel Moura e Silva, que conduziu uma das maiores buscas feitas até agora a instituições financeiras em Portugal. Para o efeito, foi necessária a criação de equipas de investigação mistas, com elementos do Ministério Público, do DIAP, da PSP, além da AdC. Sete anos passados e este processo continua a arrastar-se nos tribunais. Ainda está em segredo de justiça, mas este caso poderá gerar a maior multa de sempre aplicada em Portugal pela AdC, porque, regra geral, as coimas tendem a ser equivalentes a 5% do volume de negócios das empresas envolvidas.
Para esta entidade, existe uma luta desigual nestes processos mais complicados, que envolvem grandes interesses económicos, como é este caso da banca. A Autoridade tem de enfrentar não só os grandes escritórios de advogados do País mas também consultoras internacionais que se especializaram em economia da concorrência.
Para Miguel Moura e Silva, a vantagem da AdC é o controlo do processo. “Não podemos deixar-nos enredar em questões processuais, porque nesse caso a vantagem passa para o outro lado. Para sermos eficazes, temos de ser como a cavalaria aérea: identificar o alvo, entrar rapidamente e eliminar as defesas antes que tenham tempo de reagir”, defende.
Foi após a investigação ao poderoso setor bancário que Miguel Moura e Silva acabou por ser afastado da direção do departamento de práticas restritivas. Em 2013, já com uma nova administração, foi “empurrado” para um novo cargo dentro da instituição, como diretor da Unidade Especial de Avaliação de Políticas Públicas. Insatisfeito, decidiu afastar-se da AdC e voltar a dar aulas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde é professor associado.
Quando foi chamado pela atual presidente da AdC para assumir o cargo de vogal da administração, Miguel Moura e Silva já tinha planeado uma licença sabática de um ano para trabalhar na tese de agregação sobre os desafios da Inteligência Artificial para a concorrência. “Este era o único convite a que eu não poderia dizer que não. Não tinha desculpa. Cancelei a minha licença sabática”, diz.
O apelo da concorrência
Miguel Moura e Silva, 51 anos, natural de Coimbra, licenciou-se em Direito na Universidade Católica, em 1990, tendo como objetivo especializar-se em Direito das Sociedades Comerciais. Nessa altura ainda não existia, em Portugal, formação nas universidades em Direito da Concorrência. Tudo mudaria quando, no ano seguinte, se candidatou a uma bolsa para estudar no Colégio da Europa, em Bruges. Foi na Bélgica que se apaixonou por Direito da Concorrência. Fez, mais tarde, uma especialização na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, nos EUA, país com uma legislação centenária em matéria de cartéis e práticas restritivas da concorrência. Quando regressou a Portugal, ainda trabalhou em escritórios de advogados, mas, em 1998, conseguiu um cargo no antigo Conselho da Concorrência, organismo que foi extinto para dar origem, em 2003, à Autoridade da Concorrência.
O Conselho da Concorrência era um organismo muito burocrático e fortemente dependente da tutela. As coimas eram bastante reduzidas e os poucos processos que existiram acabaram por prescrever. No final de 2003, o Conselho da Concorrência foi extinto e deu lugar à Autoridade da Concorrência.
Em setembro de 2004, a AdC abriu um concurso para contratar um diretor para o departamento de práticas restritivas. Miguel Moura e Silva concorreu e conseguiu o lugar. Na liderança deste novo organismo, encontrou uma equipa jovem, ainda por formatar, disposta a correr riscos e sem os vícios dos antigos funcionários do Conselho da Concorrência. Miguel Moura e Silva viu a oportunidade de mudar o paradigma em Portugal. Instituiu uma forma de funcionamento muito mais eficiente e dinâmica, muito diferente da que existia no Conselho da Concorrência.
O gato e o rato
Assume que a “caça aos cartéis” é uma espécie de jogo do gato e do rato e, nestes jogos, há sempre um refinamento das técnicas usadas. Uma espécie de corrida tecnológica em que há, atualmente, um desfasamento entre o quadro legal e a realidade de comunicação das empresas. Os emails são, nos dias de hoje, a grande fonte de troca de informação e é neles que se baseia grande parte da prova.
Entre 2007 e 2012, a AdC não conseguia mandados para apreender correio eletrónico, pois, devido às alterações do Código Penal após o processo Casa Pia, a pesquisa de emails foi equiparada às escutas telefónicas. Como não são permitidas escutas nos processos contraordenacionais – aqueles com que trabalha a AdC –, o trabalho de investigação ficou gravemente comprometido.
Em 2012, com a nova lei, o Ministério Público e o Tribunal de Instrução Criminal consideraram que a AdC tinha enquadramento legal adequado para obter mandados de apreensão de correio eletrónico. E há ainda uma diretiva comunitária, que terá de ser transposta até 2021, que deixa claro que as autoridades devem ter acesso a prova em meio digital. Uma clarificação legal que pode ser fundamental para as futuras investigações da AdC. Mais do que aos emails, as autoridades querem ter acesso aos chats privados ou a aplicações usadas para comunicação, pois é através desses meios que as empresas comunicam atualmente.
Autor de vários livros sobre concorrência, uma das suas grandes preocupações é a “próxima fronteira com a Inteligência Artificial e o deep learning”. Para Miguel Moura e Silva, o problema dos cartéis assenta na cooperação e esta pode surgir de forma tácita em circunstâncias muito variadas. “Com a Inteligência Artificial, o computador aprenderá, por tentativa e erro, que a melhor forma de manter os preços elevados é cooperar com os seus concorrentes. Deixando de ter o elo humano na equação, teremos de criar uma espécie de entidade pública para analisar algoritmos e identificar este problema numa lógica regulatória”, explica.
Apesar das novas funções, Moura e Silva manter-se-á como professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em “funções de docência e de investigação, desde que não remuneradas”, esclarece o comunicado do Conselho de Ministros que aprovou a sua nomeação. Foi o próprio que pediu que ficasse escrito preto no branco que manteria a ligação à universidade.
O chamado “caçador de cartéis” está de volta à AdC e com autoridade reforçada, o que, por si só, pode ter um enorme efeito dissuasor para a prática de cartelização. No meio, admite-se que estas funções poderão funcionar como uma espécie de tirocínio para assumir a presidência em outubro de 2022, altura em que termina o mandato de Margarida Matos Rosa.