Ao ritmo do Tejo
Já lá vão dez anos desde que atuou pela primeira vez em Lisboa, numa noite que começou no palco do Musicbox e terminou madrugada dentro, nas ruas do Cais do Sodré, de copo na mão, a falar com quem lhe aparecia à frente. Casper estava prestes a mudar-se de Copenhaga para Berlim, mas a imagem daquela “cidade amigável e descontraída” nunca mais lhe saiu da memória.
Depois de seis anos na capital alemã, sentiu necessidade de “vir para o Sul”. Passou cá um mês, à experiência, em 2015, e ao regressar a Berlim já não tinha dúvidas: mudou-se no ano seguinte. “Nessa época era muito mais barato arranjar casa mas em apenas três anos tudo mudou; sinto que vim na altura certa”, diz. Apesar de passar muito tempo fora, em digressões ou a trabalhar com as suas bandas, Casper já se sente lisboeta, olhando com desconforto para um certo “descaraterizar” da cidade. “Começam a ouvir-se muitas comparações com Barcelona; duvido que venha a ser igual mas a cidade está, de facto, a ficar muito concorrida, em especial nas zonas históricas.” Depois de Alfama, agora vive no Bairro Alto mas é na Margem Sul que tem o seu refúgio: transformou em estúdio uma sala emprestada pelo artista plástico Rui Soares Costa num antigo edifício portuário. O Tejo acabou por se tornar uma espécie de metrónomo: “Sinto que há diferentes influências de Lisboa na minha música e uma delas tem que ver com a proximidade da água.”
Há, claro, uma diferença de escala em relação a Berlim. “Sempre que saio de casa sei que vou encontrar alguém conhecido”, conta, sublinhando como lhe agrada o modo de ser dos portugueses: “Simples e cordial, sem receio de serem intuitivos com estranhos.” É verdade que “é um pouco difícil planear coisas”, mas isso não o apoquenta muito porque até se revê nesse lado “mais informal” do País. “As pessoas não se importam de ficar à conversa com os amigos. Há tempo para tudo e isso agrada-me muito.”
Casper Clausen
37 anos
Dinamarca
Fundador, em 2001, de uma das mais bem-sucedidas bandas dinamarquesas, os Efterklang, que se prepara para voltar aos discos e aos palcos. Em 2016, fundou os Liima que já editaram dois álbuns
Com culpa
Já está em Lisboa há cerca de dois anos, mas continua em processo de adaptação. Ricardo nunca antes tinha vivido fora do Rio de Janeiro, onde nasceu. Oriundo de uma família de músicos, Ricardo começou por tocar piano, mas no final da adolescência passou para o baixo, “instrumento muito mais visceral”, que o levou a ser convidado por Caetano Veloso para integrar a sua banda. Foi, aliás, durante um concerto de Caetano em Lisboa, em 2010, no preciso dia em que fez 30 anos, que Ricardo conheceu a sua atual mulher, portuguesa. “Houve uma questão familiar na decisão de nos mudarmos, tive de pensar no futuro dos meus filhos e optámos por Portugal”, conta.
Mas admite que “estar aqui tem um sabor a renúncia”. A sua “turma” faz-lhe falta e a ausência dos amigos teve uma consequência: “Fez-me questionar-me muito sobre quem sou e sobre o que realmente quero.” Na sua música também já houve efeitos: “Vir para cá fez aparecer o samba na minha música. Pela primeira vez, consigo reconhecer-me como um latino sul-americano, brasileiro e do Rio, com um lado meio desvairado. No meio dos portugueses, sinto-me assim, enquanto lá sou o contrário, uma espécie de lorde inglês, como os meus amigos diziam. Lá não sou o estereótipo do brasileiro, mas aqui sou e isso faz-me sentir-me estrangeiro.”
Neste momento, ao olhar, do lado de cá do Atlântico, para o seu país, é “culpa” o que diz sentir. “É muito difícil de digerir a merda que está a acontecer no Brasil mas, por outro lado, vejo os meus amigos a mobilizarem-se cada vez mais e até é estranho estar longe neste momento tão importante”, diz. “É lastimável este movimento conservador e cobarde que saiu do armário, não tinha noção de que o Brasil ainda tinha tanto disso. Nesse sentido, Portugal parece-me um oásis de maturidade.”
Ricardo Dias Gomes
38 anos
Brasil
Membro fundador dos Do Amor, com quem gravou três discos (entre 2007 e 2015). O baixista fez parte da Banda Cê, que acompanhou Caetano Veloso em estúdio e no palco. Tem, ainda, dois álbuns a solo: -11 (2015) e Aa (2018).
Perdido em Lisboa
Porquê Lisboa? A pergunta fica momentaneamente sem resposta, com o olhar de Jacco Gardner a perder-se no Tejo que se avista do Jardim de Santa Clara. “Para mim, ainda permanece um mistério. A cidade em si já é misteriosa, mas a razão que me trouxe para cá continua uma abstração de nível cósmico [risos]”, responde. Sentiu atração por Lisboa logo na primeira visita, ainda criança, com os pais. “A cidade era muito diferente para mim e marcou-me o modo como se espalhava pelas colinas. Sou holandês, portanto estou habituado a que tudo seja plano… Lembro-me de ficar exausto.” O seu pai trabalhava na área das energias renováveis e tinha um projeto em Portugal, por isso Jacco viria mais vezes em família, mas foi só depois de vir cá tocar, no início da segunda década deste século, que sentiu, em definitivo, o magnetismo de Lisboa. “Foi um dos meus primeiros concertos com a minha banda The Skywalkers. Éramos um duo de órgão e bateria, muito ao estilo do psicadelismo dos anos 60 e fomos contratados para uma festa pela minha atual namorada, Maria, que é espanhola mas já vive aqui há mais de dez anos”, conta. Lisboa é, portanto, “indissociável” de Maria e da vida que construíram aqui. “Vejo isso como algo romântico. Há uma energia muito romântica na cidade, muito mística.” Quando começou a carreira a solo, viajou muito, “ao ponto de quase não ter vida pessoal”, mas nunca perdeu o contacto com Maria.
Depois de quatro anos a tocar pelo mundo, decidiu parar para se dedicar a tempo inteiro à composição do terceiro álbum. “Foi nesse momento que decidi mudar-me para Lisboa, até porque entretanto tínhamos começado a ter uma relação mais estável.” Foi na casa de Maria, “perto do Panteão”, numa pequena secretária, que gravou os primeiros esboços do que viria a ser Somnium, editado no ano passado. “É um álbum muito diferente de tudo aquilo que fiz até hoje, mais labiríntico, como Lisboa, resultante das minhas deambulações pela cidade”, explica. “Foi esse o meu processo e, se calhar, também o meu propósito, criar uma banda sonora para passear pela cidade. Talvez seja apenas imaginação, mas sinto aqui uma energia muito remota e inspiradora para o tipo de música que faço.”
Jacco Gardner
31 anos
Holanda
Começou a carreira no duo The Skywalkers, mas foi a solo que o músico holandês ganhou um lugar ao sol no universo da música alternativa, com um rock psicadélico que lhe valeu comparações a Syd Barrett. Conta com três discos em nome próprio: Cabinet of Curiosities (2013), Hypnophobia (2015) e Somnium (2018)
O refúgio
A história de como Peter se aproximou de Portugal tem início em 2010 quando começou a trabalhar com Panda Bear. Noah (nome real de Panda Bear, o músico na página aqui ao lado) já então morava em Lisboa e concordaram que faria sentido encontrarem-se aqui para ensaiar. Concertos e ensaios obrigavam Peter a deslocar-se a Portugal cada vez mais, viagens que aumentaram quando começaram a colaborar no álbum Panda Bear Meets The Grim Reaper.
Com o passar do tempo, o britânico começou a apreciar cada vez mais as particularidades de Portugal. “Gosto deste clima forte, quando chove é a sério!”, diz, depois de se mostrar encantado com o fenómeno do verão de São Martinho. Os enchidos e as castanhas também marcaram pontos a favor.
Peter e a mulher, Sam (que é, também, a sua agente), moram em Galamares, Sintra, onde todos os vizinhos se conhecem pelo primeiro nome. Têm um jardim com todo o tipo de plantas e uma vista privilegiada para o pôr do Sol na serra. “Como é possível ser mais barato morar aqui do que em Lisboa?”
A decisão de morar ali surgiu da dificuldade em encontrar uma casa com espaço aberto no centro da capital. “Nunca vivi num apartamento e se ficasse num em Lisboa ia contra o propósito de me mudar para Portugal…” Mas nem tudo foi fácil nesta transição. Dois anos depois de estarem instalados, a GNR e funcionários de um banco apareceram-lhes à porta e informaram o casal de que o senhorio já não era proprietário da casa e estava a alugá-la ilegalmente. Peter e Sam falaram das conversações para comprarem a casa e ouviram: “Quem possui a casa agora é o banco, por isso vão falar com eles. Hoje pode ser o vosso dia de sorte.” E foi mesmo.
“Escrevo mais letras no jardim, quando não estou a pensar nelas. As ideias começam a surgir quando faço tarefas mundanas como plantar…”, diz, dando a entender que faz questão de passar muito tempo por ali, sem sentir a atração da cidade. “Esta zona é muito inspiradora; nos primeiros anos que aqui vivi, todos os dias via uma coisa nova. Gosto de me deitar na relva e de observar os animais que aparecem por aqui, até as moscas nos seus rituais de acasalamento, os vários tipos de abelhas, lagartos a passearem na relva…” “E outro dia acho que vi o Robert Smith [vocalista dos The Cure] aqui perto”, conta Peter, entre risos. “Não tenho a certeza se era ele, mas era muito parecido.” Hugo Geada
Peter Kember
53 anos
Inglaterra
Fundador dos Spaceman 3, referência no ressurgimento do rock psicadélico de guitarras (ativos entre 1982 e 1991). A solo, assina como Sonic Boom e tem os projetos Spectrum e E.A.R. (Experimental Audio Research). Produziu discos de, entre outros, Panda Bear, MGMT e Beach House
Viva o Benfica
Quando, em 2003, aterrou em Lisboa, o norte-americano Noah Lennox sentiu-se logo “atraído pela cidade”. À época, a banda de Baltimore, EUA, Animal Collective tinha apenas um disco editado, mas já era considerada um dos nomes de proa da nova vaga da música independente e, após uma longa digressão pela Europa, a capital portuguesa, que não conhecia, pareceu-lhe perfeita para uns dias de descanso. Na segunda noite, conheceria Fátima Pereira, uma designer de moda portuguesa, que é hoje a sua mulher. E, no ano seguinte, mudar-se-ia para Lisboa, “a cidade mais descontraída” que alguma vez conheceu. “Estive quatro anos em Nova Iorque e, antes disso, 14 em Baltimore, pelo que a partir deste ano, Lisboa torna-se a cidade onde vivi mais tempo seguido na minha vida”, diz à VISÃO, numa esplanada do Príncipe Real, o bairro onde vive com a mulher e os dois filhos.
O seu último álbum a solo, Buoys, foi gravado em Lisboa e Noah não tem dúvidas de que “seria um disco diferente”, se tivesse sido feito noutro lugar. “O ambiente da cidade inspira-me e influencia-me, sem dúvida, a nível criativo e pessoal, mas é-me difícil quantificar isso”, assume, recordando o estúdio lisboeta onde gravou, no qual “conseguia ver o pôr do Sol todos os dias”. Em Portugal descobriu outra paixão, o futebol; ou melhor, o Benfica, que até dá nome a um tema do disco Tomboy (de 2011). “Já gostava de futebol, mas sempre fui mais fã de basquetebol. Quando cá cheguei é que comecei a prestar-lhe mais atenção. A minha família odeia quando vejo futebol, especialmente os jogos do Benfica, porque grito muito com a televisão…”, admite o músico que na foto de promoção do último álbum aparece vestido com uma camisola do “glorioso”. A paixão pelo Benfica começou por acaso, quando, ao fazer zapping, parou na transmissão duma final da Taça de Portugal, entre o Benfica e o Porto. Não sabia nada da história dos clubes, nem da rivalidades Norte/Sul, mas decidiu imediatamente que ia torcer pelo Benfica. “No primeiro sítio onde vivi, no Bairro Alto, o meu vizinho de baixo era um daqueles adeptos hardcore… Costumávamos ver os jogos juntos e era muito divertido!”, conta, já quase como um alfacinha.
Panda Bear
40 anos
Estados Unidos da América
Membro fundador dos Animal Collective, em 2000, com quem já gravou oito álbuns. Tem, também, uma vasta discografia a solo: em fevereiro lançou Buoys, o seu sexto álbum como Panda Bear.