Lá se passou mais uma edição do festival que é um puzzle. Quando chega ao fim, cada espectador juntou as suas peças e dificilmente se encontram duas pessoas que tenham tido a mesma experiência e completado o mesmo quadro.
E no Vodafone Mexefest tudo o que não se viu pode ter, contas feitas, tanto peso como o que se viu.
Mais do que noutros festivais, a personalidade do festivaleiro pode condicionar, e muito, a qualidade da sua experiência. O ultra descontraído pode passar dois dias (duas noites, vá) avenida acima, avenida abaixo, parando aqui e ali, encontrando este e aquele, um copo aqui, mais outro ali e, no limite, falhar praticamente todos os concertos sem que isso o afecte demasiado. No outro extremo, o obsessivo pode ter uma noite de pesadelo: enfrentar filas demasiado grandes, falhar aqueles últimos dez minutos de concerto a que tinha planeado assistir, não conseguir mesmo ver aqueles três artistas que se tinha assinalado no programa porque os horários não o permitem mesmo. Afinal, são cerca de 50 concertos em mais de dez palcos, com muitas sobreposições. Esse é o encanto do Mexefest, esse é o stress do Mexefest. Os mais ansiosos e inseguros ficam facilmente com a sensação de que estão no lugar errado e de que noutras salas é que a coisa se está a dar, mesmo boa. Os mais confiantes, festejam cada escolha como se fosse a única possível. O balanço final do festival, para cada um, não é tanto a memória pessoal dos concertos que se viu: é também a sensação que fica de tudo o que não se viu, o eco das inevitáveis conversas em encontros mais ou menos rápidos – “Grande festa dos Songhoy Blues na Casa do Alentejo, não viste?”, “Os Cigarrettes After Sex são uns grande chatos!”, “Cigarrettes After Sex foi o máximo, até projetaram uma imagem da Anna Karina!”, “Que bem esteve o Camané com o Momo!”, “O Conjunto Corona nos bastidores do Capitólio foi mesmo fixe…”, “O Benjamin e Barnaby Keen estavam mesmo a curtir em palco, foi tão bom!”, “Não viste aquela iraniana no São Jorge, a sério?!”.
É fácil ficarmos com a sensação de que andámos, passo a passo, a falhar os palcos certos. Mas também acontece todos os anos, felizmente, a sensação de vivermos alguns momentos únicos, de descoberta, de surpresa, de encontros e reencontros em lugares inesperados.
De cada puzzle pessoal e intransmissível também depende o mood com que se chega ao fim. Melancólico e reflexivo, a pensar na vida, ou em êxtase hedonista a abanar o corpo todo. O menu servido pelo Mexefest permite muitas cambiantes.
Eu vi que o Manel Cruz continua a ter uma legião de fãs que o adoram e gritam muito alto, faça ele o que fizer. No dia seguinte vi o mesmo culto prestado ao rapper Allen Halloween, com muitos miúdos em êxtase cantando as suas letras de cor. Vi que o surf rock made in Madrid, com o castelo de São Jorge em fundo, das espanholas Hinds tem bastante graça no primeiro tema, alguma graça no segundo, “olha, parecem os Drums com sotaque” no terceiro, “vamos mas é embora” no quarto. Vi que Destroyer tinha músicos a mais no palco do Coliseu e gostei muito mais de o ter visto há uns anos no MusicBox. Vi uma canção e meia de Julia Holter no Tivoli e não aguentei mais, não porque fosse mau mas porque me apetecia barulho depois de ouvir Aldous Harding. Sim, Aldous Harding, no São Jorge, foi o único concerto que vi do princípio ao fim, impressionado tanto com a sua voz (parece inventada para cantar aquelas belas canções folk melancólicas como a voz de Camané parece feita para cantar fado) como com o seu olhar fixo de coruja. A neo-zelandesa Aldous tem um ar vagamente perturbado e inquietante, um mistério que lhe fica bem. Vi, à minha frente, uma jovem com uma camisa estampada com grandes olhos de coruja e achei que não era uma coincidência. Vi Liars a fazerem a festa na Estação do Rossio – “O que raio é que ele tem vestido? É um tutu de bailarina? Um vestido de noiva?”, não interessa, finalmente algum rock, finalmente o corpo em movimento! Vi uma conferência performance do genial Enrique Vila-Matas com a Dominique Gonzalez-Foerster vestida de Marlene Dietrich no Teatro Nacional – mas, ah, espera, isso era noutro festival…
Vi pouco, é verdade. Mas, acreditem, tudo o que não vi marcou-me imenso. E para o ano quero voltar à Liberdade da Avenida.