Se há história pessoal que simboliza bem o sonho americano e a fé no poder dos indivíduos para se superarem no contexto do american way of life, é a de Walter Elias Disney, nascido a 5 de dezembro de 1901 em Chicago. Ainda antes da sua morte, há exatamente 50 anos, a 15 de dezembro de 1966, o seu nome transformou-se em marca, na gigante empresa de alcance mundial que todos conhecem.
Na verdade, é bem possível hoje estar familiarizado com a multinacional Disney e não fazer ideia de que está ali o nome de alguém, uma história individual que passou a coletiva.
Olhando para o pequeno Walter, no dealbar do século XX, nada o faria prever.
O seu pai, de origem irlandesa, nasceu no Canadá em meados do século XIX e representava o espírito lutador e aventureiro de quem acreditava na força do trabalho e do sacrifício num mundo novo onde tudo parecia possível (mas nem por isso fácil). Austero, tentou vários negócios: foi empreiteiro, dono de plantações de citrinos na Florida, agricultor no Missouri, proprietário de uma empresa de distribuição de jornais em Kansas City…
Desprezava tudo o que cheirasse a entretenimento e vida ociosa, mas foi ainda na quinta remota do Missouri que Walt começou a revelar o gosto pelo desenho.
Já no Kansas, onde se levantava a meio da noite para ajudar o pai a distribuir jornais, revelou um outro interesse: a expressão dramática e pequenos espetáculos de teatro e variedades. A semente do que viria a ser a Walt Disney já estava ali, germinando no cruzamento dessas duas paixões, mas ninguém ainda poderia adivinhar até que ponto ela se ia desenvolver. Muito menos o pai de Walter Elias, mesmo quando, contrariado, aceitou que o filho se inscrevesse em aulas no Kansas City Art Institute aos sábados de manhã.
O GRANDE EMPREENDEDOR
A tecnologia da animação era, então, rudimentar e aplicada apenas a anúncios básicos ou pequenas curiosidades e habilidades, na senda ainda das experimentações do século XIX; o cinema, esse, começava a apaixonar multidões. Walter tinha 15 anos quando estreou a primeira adaptação cinematográfica (muda, claro) da Branca de Neve, realizada por J. Searle Dawley, que o marcaria para sempre.
E havia uma personagem que lhe enchia as medidas: Charlot. A identidade do futuro Walt Disney continuava a construir-se, peça a peça. Há vários momentos chave que podem ser identificados como o princípio de tudo. Um deles terá certamente sido o dia em que, regressado de França (para onde fez questão de ir, com apenas 16 anos, como condutor de ambulâncias durante a Primeira Guerra Mundial) recusou o emprego que o pai, agora sócio de uma fábrica em Chicago, tinha à sua espera e encontrou trabalho numa pequena empresa: a Kansas City Films Ad. Aí faziam-se pequenos filmes publicitários, usando as técnicas que estão na base do cinema de animação, para passarem nos cinemas locais. Apesar de distante dos grandes centros (Nova Iorque e Los Angeles onde, já então, tudo acontecia) foi o sítio certo para, com 18 anos, se iniciar na aplicação prática dos seus sonhos de desenhador e ator. Não demorou muito até começar a criar um trabalho em nome próprio, independente dessa empresa: os Laugh-O-Grams eram uma espécie de cartoons de jornal animados, com pequenos sketches que o jovem animador conseguia vender aos cinemas da cidade.
E foi com esse nome Laugh-O-Grams, e com esse material, que Walt Disney fundou a sua primeira empresa. Nos dias de hoje, Walter Elias seria o típico jovem empreendedor, a tentar promover as suas visões de negócio nos Web Summits desta vida… Há cerca de cem anos, era apenas mais um a perseguir o seu sonho numa América fervilhante.
OSWALD, UMA TRAIÇÃO COM NOME
O seu pai podia ser tudo menos um entusiasta da estranha carreira de um filho que tinha escolhido ganhar a vida a fazer desenhos animados, mas no percurso de Walt Disney há vários episódios que mostram como a herança paterna teve uma palavra a dizer. E hoje essa palavra seria “resiliência”.
A Laugh-O-Grams conseguiu algum sucesso local com uns pequenos filmes inspirados na Alice do clássico de Lewis Carroll onde se misturavam imagens reais (a da personagem principal, interpretada por uma criança) e desenhos animados, mas acabaria por não ser economicamente viável… Talvez o princípio de tudo seja mesmo, afinal, aquele dia do verão de 1923 em que Walter apanhou um comboio em direção a Los Angeles, Califórnia. Aí, estava o seu irmão Roy a recuperar de uma tuberculose (havia mais dois irmãos e uma irmã, mas Roy era o mais próximo de Walt) e, juntos, teriam logo, em outubro desse ano, um pequeno estúdio arrendado, com muita margem para crescer, voltando aos tais filmes com Alice como protagonista.
Antes de impor a Walt Disney como uma empresa sólida e virtualmente indestrutível o seu visionário fundador teve vários contratempos que poderiam ter deitado tudo a perder. Um deles teve nome de personagem: Oswald, the Lucky Rabbit (o “coelho sortudo”). Podia hoje ser recordado como a primeira grande invenção da Disney, mas depois de ter conseguido algum sucesso e provado o seu potencial lucrativo, aconteceu um desses golpes que o espírito competitivo do american way potencia: o sócio Charles Mintz tinha os direitos de propriedade do nome desse “coelho sortudo” (desenhado por Walt Disney) e fez-se valer disso, contratando alguns dos desenhadores para uma aventura em nome próprio, deixando os estúdios de Disney sem viabilidade para continuar…
Walter Elias, tal como o pai, não era pessoa de desistir facilmente. Uma das suas qualidades era aprender com os erros e seguir destemidamente em frente, rumo ao impossível (“É bem divertido fazer o impossível” é uma das suas citações mais célebres e repetidas).
INVENTAR O FUTURO
O frustrante episódio de Oswald foi, afinal, a aprendizagem certa para o passo seguinte. Walt Disney não deixaria nada ao acaso na construção de uma nova personagem, inspirada por um ratinho de es- timação, chamado Mortimer, dos tempos do estúdio de Kansas City: em 1928 nascia Mickey Mouse (com algumas semelhanças físicas com Oswald). Em 1931 já era suficientemente popular e icónico para merecer um artigo inteirinho na revista Time.
Uma das incontestadas qualidades de Walt Disney no mundo da animação era a sua capacidade de antecipar (e inventar) o futuro, indo convictamente contra verdades estabelecidas. Quando os desenhos animados não passavam de pequenas anedotas com movimento ele percebeu que podia criar personagens com personalidade própria (como Charlot); quando os outros estúdios se entusiasmavam com a simples colocação de música, ou vozes, sobre as imagens, Walt Disney percebeu como podia ir muito mais longe na sincronização de sons e ações; quando apareciam as primeiras, e rudimentares, tentativas de colorir a película, Disney aproveitava o último grito da Tecnicolor (em 1932 o episódio Flowers and Trees, da série Silly Symphonies, foi o primeiro filme de animação a cores da história).
O maior desafio de todos estava para breve e, mais uma vez, ia contra a opinião geral. Se hoje nos parece absolutamente óbvio assistir a uma longa-metragem de animação, nos anos 30 isso parecia uma bizarria. Os desenhos animados ficavam bem antes dos filmes “a sério” e aguentavam-se, no máximo, durante uns 10 minutos. Walt Disney já estava noutra e, provavelmente inspirado pela memória do tal filme mudo que viu na adolescência, preparava em segredo aquele que seria a primeira animação popular numa longa-metragem: a 21 de dezembro de 1937 a estreia de Branca de Neve e os Sete Anões fazia história.
Aí sim, Walt Disney já tinha provado que os seus sonhos se podiam materializar num mundo concreto, com o seu nome, que lhe sobreviveria. Quando, no fim do outono de 1966, numa consulta de rotina, lhe foi diagnosticado um cancro nos pulmões (era um grande fumador), Walter não teve muito tempo para preparar o seu legado. Mas, na verdade, passou toda a vida a fazer isso. E, pelo século XXI fora, a lenda continua.