«Muito obrigado por ter vindo». Com o cabelo grisalho muito curto, um impecável fato cinzento e umas confortáveis alpercatas pretas nos pés, Leonard Cohen avança de mão estendida, numa suite elegante, do parisiense Hotel Raphael, na Avenue Kléber. O seu sorriso denota uma calma imensa, e simpatia natural. As rugas, a pose ligeiramente encurvada e os movimentos lentos denunciam os seus 67 anos. O olhar não. Começa por explicar que só consegue suportar esta verdadeira digressão de 15 dias sem concertos mas com entrevistas permanentes em vários países da Europa, porque a encara como um conjunto de simples «actos sociais»: «São pessoas que vêm ter comigo e com quem converso, nada mais.» Nada mais, nada menos.
O silencioso desce à cidade
«Sabia que Serge Gainsbourg costumava beber no bar deste hotel?», pergunta Leonard Cohen, afundado numa pequena poltrona. «Estive com ele algumas vezes, aqui em Paris; lembro-me de um piano que o Gainsbourg tinha, todo transparente, de vidro».
Por razões profissionais convém dar alguns rumos predefinidos à conversa (até porque a meia hora de entrevista é cronometrada ao segundo pela responsável da editora de Ten New Songs, a Sony). Mr. Cohen está disponí- vel para todas as guinadas, mesmo as mais abruptas, nos temas a abordar. Começámos pelo que nos trouxe ali, a criação de um novo disco, depois de um silêncio de quase uma década. O último álbum de originais é de 1992: «The Future foi uma experiência muito intensa e difícil, escrito e gravado no meio de uma grande confusão na minha vida.» Nesse ano, Leonard Cohen sentiu com muita proximidade os grandes motins de Los Angeles que destruí- ram mesmo três negócios em que estava envolvido (uma mercearia, uma loja de electrónica e outra de equipamento musical). «Da minha varanda, conseguia ver cinco grandes incêndios. O ar estava cheio de cinzas mas, estando a escrever sobre este género de coisas há tanto tempo, não foi uma surpresa», contou a Ira Nadel, uma das suas biógrafas.
Mas voltemos à nossa conversa: «Em 1993 – estava a chegar aos 60 anos – ao acabar a digressão, como sempre com muita bebida e desordem, senti que era o momento de estruturar, de alguma mneira, a minha vida, de forma a intensificar os estudos com o meu mestre, que se estava a aproximar dos 90 anos.» O seu «mestre» chama-se Roshi, vive nas montanhas, na comunidade zen de Mount Baldy (Califórnia) e «está em muito boa forma, aos 94 anos». Foi nesse mosteiro que Leonard Cohen se recolheu, na década de 90, não para trocar a sua religião natural (o judaísmo) pelo budismo, mas para encontrar um outro quotidiano, uma outra existência que o ajudasse, então, a «estruturar» a sua. Passou a levantar-se horas antes de o sol nascer, a cozinhar para o «velho mestre», a participar activamente em toda a vida comunitária dos monges e a meditar muito, por sistema. Ganhou um novo nome: Jikan, o Silencioso.
Na Primavera de 1999, desceu à cidade e instalou-se, de novo, em Los Angeles, onde habita actualmente. «O meu período no mosteiro pareceu chegar a uma conclusão natural, senti isso. Estive ligado a esse velho professor durante cerca de 30 anos, aprendi muito com ele, e ainda me sinto próximo de Roshi e de toda a comunidade.»
Muitos dos hábitos aprendidos na montanha mantiveram-se. Mas hábitos, também estes, que não fazem o monge. O Leonard Cohen poeta, escritor de canções, músico, renasceu na sombra de Jikan, o Silencioso. «Na verdade, comecei outro recolhimento, noutro mosteiro», diz. «O trabalho para este disco ao longo dos últimos dois anos foi muito intenso, passámos muito tempo nos estúdios.»
Leonard & Sharon
Há algo de novo em Ten New Songs , que será lançado em toda a Europa, no próxima dia 8 de Outubro, relativamente a todos os discos anteriores de Leonard Cohen. Certamente que não é a voz, inconfundível, que sabe bem reencontrar agora em temas novos. O que aqui acontece pela primeira vez é um disco a dois, uma parceria que percorre todas as faixas, de In My Secret Life até The Land of Plenty. Sharon Robinson é o nome a fixar. A capa do disco, onde aparece com Leonard Cohen, não deixa dúvidas quanto à sua importância no projecto. Sharon não só assina a produção, como é co-autora das dez canções e lhes empresta a sua voz (muito soul), lado a lado com a do mestre. Mais impressionante ainda: todos os arranjos, programações e execução dos instrumentos são de sua responsabilidade. Em I’M Your Man (1988) e The Future (1992) já havia duas excelentes canções com o dedo de Sharon Robinson: Everybody Knows e Waiting For The Miracle, respetivamente. A história da sua colaboração com Leonard Cohen vem de muito antes, quando, em 1979 e 1980, andou com ele em digressão por vários palcos. Além do mais, Sharon Robinson é também ela discípula de Roshi.
«Acho que sim, este disco reflecte a minha vida nos últimos anos, com muita calma e descontração», reconhece Cohen. Se, em The Future, se anunciava o apocalipse enquanto se esperava um milagre que nos salvasse, em Ten New Songs tudo é muito mais pacífico e tranquilo. Há até o regresso de uma canção com nome de mulher (ao melhor estilo do autor de Suzanne e So Long, Marianne): Alexandra Leaving. O tom é sereno, a voz de Leonard Cohen percorre todo o disco sem grandes variações (monocórdica para os seus dtractores, cativante como poucas para os seus maiores fãs). Os arranjos, sem floreados nem exuberâncias, parecem procurar a essência, a síntese possível, do estilo de Leonard Cohen — eficazes, mesmo quando usam o som demasiado artificial de percussões maquinais.
‘Esta é a minha história’
Ten New Songs é, sobretudo, o regresso de uma voz, no sentido mais amplo que esta palavra pode ter. Ainda no mosteiro, Cohen dizia: «Actualmente a minha única necessidade é anotar tudo. Não me sinto como um cantor, ou um escritor. Sou apenas a voz, um diário vivo». Este disco é o primeiro resultado público dessa atitude e dessa fase austera e zen de Leonard Cohen. O outro há- de ser o muito esperado livro Book of Longing, anunciado há anos, que irá recolher os muitos poemas ainda por publicar de Leonard Cohen.
A permanência na montanha budista californiana parece ter sublinhado em Leonard Cohen os traços de modéstia e humildade. «No meio dos milhares que são conhecidos, ou querem ser conhecidos, como poetas, talvez um ou dois sejam genuínos e o resto são falsificações (…). Escusado será dizer que eu sou uma das falsificações, e esta é a minha história», escreveu Cohen recentemente, em formato de poema, com o título Thousands.
Confrontámo-lo com tanta modéstia. Resposta: «A poesia é um veredicto, um veredicto dado por outros em relação ao nosso trabalho. Normalmente dado por outros ao longo de várias gerações. E eu nunca planeei, nunca o faria, entrar nessa categoria de poetas — nem saberia como o fazer. Se o meu trabalho for considerado, esse veredicto vai ser feito muito depois de eu morrer. Não vale a pena esperar.» Logo a seguir revela: «Muitas vezes, vejo-me como uma espécie de jornalista a tentar fazer uma reportagem, talvez mais uma crónica, tão rigorosa e pertinente quanto possível.» Surpreendente para este conquistador que muitos (muitas?) associam ao charme em pessoa, romântico e amante inveterado.
Uma das canções do novo disco tem como título You Have Loved Enough (qualquer coisa como Já Amaste o Suficiente). É irresistível devolver-lhe esse título em formato de pergunta. «Senhor Leonard Cohen, já amou o suficiente?» Resposta, misteriosa: «O meu coração está sempre a cozinhar o seu shish kebab [especialidade culinária israelita] no meu peito… Hoje, tenho mais um forte sentimento de afectividade a que não chamaria amor. Evito, como sempre fiz, um controlo, direccionar o amor estrategicamente. Tentei fechar a porta muitas vezes, mas afinal não havia porta nenhuma…» As mulheres na vida de Leonard Cohen foram muitas. Com Suzanne Elrod, mãe dos seus dois filhos, teve a relação mais duradoura, talvez também a mais complicada, que quase terminou em casamento (mas, curiosamente, a Suzanne que o inspirou para a célebre canção com esse título foi outra). A sua vocação sempre foi mais a de amante livre e descomprometido. Mas sabe-se pelo menos de uma mulher por quem Leonard Cohen se apaixonou e que resisitiu ao seu charme: Nico, a voz feminina dos Velvet Underground. Foi ela quem apresentou Cohen a Lou Reed, que aproveitou para lhe pedir um autógrafo no seu exemplar de Flowers for Hitler, o livro de poemas que Leonard Cohen publicou em 1964.
O refúgio
Actualmente, Leonard Cohen vive sozinho «num bairro indistinto do sudeste de Los Angeles». A sua filha Lorca (em homenagem ao poeta) vive num apartamento junto do seu e o filho, Adam, tambérm não mora muito longe. Ela é proprietária de uma loja de móveis, em Los Angeles, e Adam aposta numa carreira de músico que ainda não o conseguiu transformar em muito mais do que «o filho de Leonard Cohen» (o seu disco de estreia, Adam Cohen, de 1998, passou praticamente despercebido). Aos 67 anos, o artista canadiano fala do seu espaço como de um idílico refúgio: «Saio muito pouco da minha casa e do meu estúdio/garagem. A minha filha tem dois cães, o Noba e o Toast, que eu baptizei assim porque tem cor de torrada, com quem gosto muito de brincar. No jardim, temos uma laranjeira e videiras…».
Apesar de muito mais sereno, aparentemente longe das depressões que têm acompanhado a sua vida, Leonard Cohen não é hoje, apesar de tudo, um optimista a sorrir para o futuro. Encontra nas suas referências literárias uma boa maneira de falar da velhice: «Tennessee Williams escreveu um dia: ‘A vida é uma peça de teatro muito bem escrita, excepto no 3.º acto’. E eu estou a começar agora o 3.º acto». O sorriso irónico no final desta frase é suficientemente jovial para percebermos que ainda podemos contar com Leonard Cohen, mesmo no seu 3º acto. Neste momento entusiasma-se com a ideia de voltar aos palcos (o que não acontece desde 1993) e com o projecto de escrita de um romance.