É preciso recuar no tempo para compreender como é que uma empresa que, há sete anos, teve o fim anunciado, com ordenados em atraso e à beira da falência, se revitalizou e passou a ser um símbolo de qualidade da arte made in Portugal. O kitsch tornou-se cool e as couves do serviço de mesa das nossas avós são agora objetos de design usados para decorações contemporâneas, combinadas com peças minimalistas e ambientes depurados. Em 2009, quando o Grupo Visabeira, do qual também faz parte a Vista Alegre, comprou a marca Bordallo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, havia uma grande confusão por parte dos portugueses em perceber a diferença entre a obra de Rafael Bordallo Pinheiro e a cerâmica generalizada daquela cidade da região Oeste, conhecida pelas suas olarias. “Numa primeira fase sentimos necessidade de dar esta explicação aos consumidores. Foi através de parcerias com artistas contemporâneos, como Joana Vasconcelos, que trouxemos a marca para a frente do consumidor, despertando-lhe a curiosidade pela obra do mestre”, explica Nuno Barra, administrador do grupo e diretor de marketing e de design externo da Bordallo Pinheiro. (Nota: a VISÃO atualiza os nomes antigos para a grafia moderna, pelo que escreve “Bordalo” quando se refere ao artista, mas mantém a grafia “Bordallo” para se referir à marca, que tem efetivamente dois “l”.)
Nesse ano, em Lisboa, a chegada da primavera fez-se anunciar com um bando de andorinhas (de 1891) a forrar a parede da Ermida da Nossa Senhora da Conceição, em Belém, uma instalação da dupla de designers Pedrita. Até aqui Bordalo Pinheiro foi um visionário, ao prever o sucesso desta sua criação – que se tornaria um símbolo da migração portuguesa – tendo registado a patente em 1896, coisa que fez a poucas peças. Ao movimento pró-Bordalo, além de Joana Vasconcelos, juntaram-se outros artistas plásticos nacionais, como Elsa Rebelo, Bela Silva e Susanne Themlitz, e os designers Fernando Brízio, Henrique Cayatte e Catarina Pestana, numa instalação no Museu do Design e da Moda – Mude.
Estávamos em 2011 e nasciam assim os Bordallianos, que pegando em peças do republicano de humor mordaz criaram novas obras. O movimento chegava também ao Brasil, com mais 18 artistas plásticos, entre eles Barrão e Vik Muniz, e duas designers de moda, com direito a exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Só quando vieram a Portugal e visitaram a fábrica nas Caldas da Rainha, alguns dos artistas brasileiros perceberam o que eram, afinal, as andorinhas negras que os seus avós, de origem portuguesa, tinham em casa.
Missão: internacionalizar
Por considerarem o legado artístico de Bordallo Pinheiro “absolutamente diferenciador e consistente” face ao panorama da cerâmica internacional, o Grupo Visabeira não hesitou em acreditar no projeto. “Era frequente, por exemplo, encontrarmos peças no mercado francês com a marca do distribuidor ou irmos a feiras internacionais com stands decorados com peças Bordallo e referência às lojas”, diz o administrador Nuno Barra. “Na altura, tínhamos também comprado a Vista Alegre, e fazia sentido com a rede de retalho própria escolher bem a gama e fazer as peças entrarem na rede de distribuição da marca de porcelanas.”
Para que a fábrica chegasse ao atual ponto de equilíbrio entre as receitas e as despesas, crescendo de uma curta faturação de €2,8 milhões ao ano, para os atuais €4,8 milhões, foi preciso uma restruturação de métodos. Nuno Barra conta que a empresa “estava muito mal organizada, com a maquinaria envelhecida e processos de produção desorganizados”. Ainda hoje a maior parte das peças é feita manualmente, mas o processo foi todo revisto e otimizado com a compra de fornos novos ou reaproveitando as aparas do barro, o que fez diminuir a encomenda da matéria-prima, aumentando a produção. Um plano em constante mutação, pois vem aí uma segunda vaga de investimentos para aumentar a capacidade de produção. “A procura cresceu tanto que a fábrica não tem capacidade de resposta.”
Veja a galeria de fotos:
A forte ligação de Bordalo Pinheiro ao Brasil nasce, em 1875, quando é convidado para dirigir o jornal O Mosquito, dois anos depois funda o periódico Psit!, dedicado ao teatro, à ópera e à tauromaquia. Por isso, começar o processo de internacionalização pelo Brasil fez todo o sentido para o Grupo Visabeira. Aquando da exposição dos Bordallianos, no Rio de Janeiro, Nuno Barra percebeu que Bordalo Pinheiro era considerado o pai da caricatura brasileira quando “apareceu um especialista nesta arte que ia lançar um livro, cujo maior capítulo era dedicado a Bordalo”. Desde 2013 que a Bordallo Pinheiro participa também em grandes feiras internacionais, como a Maison & Objet, em Paris, ou a Ambiente, em Frankfurt. “Escolhemos ficar no hall onde estão marcas de design mais minimalistas, depuradas, e algumas nórdicas, e como a Bordallo é totalmente o oposto – tem cor, relevo, é uma coisa bem ousada – foi um sucesso. Estamos a beneficiar também de um fenómeno que é um interesse cada vez maior pela cor. As pessoas estão a sair de uma fase de branco e preto”, acrescenta Nuno Barra.
Aliás, naturalismo e cor são as características apontadas pelo administrador para o trabalho do mestre ser tão atual. “Tanto a forma como a cor eram estudadas até à exaustão”, lembra Elsa Rebelo, artista plástica e diretora artística e criativa da marca, uma Bordalliana convicta. “Os vermelhos eram muito difíceis de reproduzir, e quando não conseguia importava pigmentos de Inglaterra. Os verdes-cobre, por exemplo, eram feitos com o metal moído na própria fábrica. Como na altura se usavam fornos a lenha, os tons ganhavam profundidade e características que de outro modo não se conseguia”, descreve Elsa, filha de um ceramista das Faianças Belo de Avelino Soares Belo, discípulo de Bordalo, que o ajudou a construir a jarra Beethoven (1895), peça única com 2,60 metros, atualmente em exposição no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Tiveram de construir um forno só para esta peça, uma encomenda de José Relvas, político republicano, para o salão de música na sua casa, a Quinta dos Patudos, em Alpiarça, mas que devido à dimensão nunca chegou a lá entrar.
Todos os anos, são concebidas coleções novas, de mesa, decorativas ou de colecionismo, para levar às feiras. Este mês, os dois serviços de mesa “Melancia” e “Rua Nova” (inspirado na azulejaria portuguesa) ganharam distinções nos German Design Awards, atribuídos há mais de 60 anos pelo Conselho Alemão do Design, o que para a Bordallo é “uma coisa inédita”. A grande novidade deste verão, já em setembro, será a abertura de uma loja própria na Avenida Guerra Junqueiro, em Lisboa. “Gostávamos de experimentar o Chiado, mas as rendas ainda são muito altas”, lamenta Nuno Barra. Uma nova loja, a juntar-se às trinta da Vista Alegre, à Vida Portuguesa (da empresária Catarina Portas), grande divulgadora de marcas portuguesas caídas no esquecimento, ao El Corte Inglés, de Lisboa e Gaia, e à carrinha Citroën HY, de 1960, que há dois anos circula no eixo Baixa, Chiado e Terreiro do Paço, a vender peças da Bordallo.
‘Gostava de ter bebido uns copos com ele’
Com a marca um pouco “parada no tempo” era preciso desenvolver novos produtos, incluindo também peças mais acessíveis. “Queremos recuperar o lado mais caricatural, mais ácido, mais provocador, e por isso, em 2015, lançámos a coleção ‘Figurões’, com António, cartoonista bastante bordaliano na sua abordagem”, diz Nuno Barra. Já a exportação da coleção “Sardinha by Bordallo”, com 60 originais, representa mais de 10% das vendas. Um fenómeno na Coreia do Sul, que é o segundo melhor mercado de exportação da marca, depois de Espanha. Seguem-se França, Alemanha, Estados Unidos e Brasil.
Nesta terceira edição, Manuel João Vieira foi o artista convidado para conceber uma peça a partir da sardinha original (1889). O artista e cantor (Ena Pá 2000, Irmãos Catita) não demorou muito a magicar um cantil. A “Sardinha Bêbeda”, apenas com 99 exemplares (€169/cada), reflete uma recordação que Manuel João Vieira guarda da casa de uma tia onde nas escadas havia um tigre que abanava a cabeça. Lembrou-se de juntar uma cabeça do Zé Povinho à sardinha que tem de ser montada em cima de uma vieira, em jeito de pedestal. Para Manuel João Vieira, o mestre Bordallo foi “um virtuoso que trabalhou em ilustração e pintura como ninguém, deixando um legado muito interessante. Gostava de ter bebido uns copos com ele.”
Do vasto universo gastronómico, além das frutas e dos legumes, Bordalo também desenhou o mundo marinho, que é aproveitado agora para uma nova coleção de 22 “Peixes e Mariscos à la Bordallo”, à venda a partir de setembro. Há de tudo, para todos os gostos, desde bacalhau, peixe espada, chicharro, carapau, peixe-vermelho, percebes, amêijoas, mexilhões, vieiras, caranguejos, santolas, lagostas… “As expressões dos animais são incríveis. Bordalo põe os animais quase a falar connosco. É de um apuramento estético muito grande”, diz Elsa Rebelo.
E projetos é o que não falta. Até ao fim do ano terminará uma coleção com artistas do mundo inteiro, que inclui Alexandre Herchcovitch, o rebelde estilista brasileiro; aguardam que Vhils, o “nosso” Alexandre Farto, tenha algum tempo livre para uma parceria, e falta o “sim” final do designer francês Philippe Starck, que já foi à fábrica e está a trabalhar numa peça.
Não há uma razão única para o trabalho de Bordalo Pinheiro ter voltado à ribalta, de onde, desculpe-nos o leitor a imparcialidade, nunca deveria ter saído. Nuno Barra acreditou no “efeito generalizado da moda do vintage e do retro”, que em Portugal aconteceu ainda de “forma mais violenta, porque percebemos que temos coisas muito boas e andávamos a deixá-las morrer.”
Elsa Rebelo defende a ideia de que o facto de a fábrica ter estado em perigo iminente de fechar despertou o interesse das pessoas. “Perceberam o quão querida é a marca no País.” Para a artista plástica, a recuperação dos bichos gigantes para os jardins do Museu da Cidade, em Lisboa, em 2011, e a intervenção de artistas contemporâneos refletiram o esforço de chegar a um público cada vez mais novo. “Na obra de Bordalo há toda uma poética, seja ao nível da expressão, do movimento e da qualidade, que a torna única, e que tentamos manter na produção. Inspiramo-nos no que Bordalo teve de génio e, à luz dos nossos dias, criamos uma peça moderna, mas com a génese do que o artista nos deixou.” Mesmo que a moda do vintage passe, a Bordallo já é sustentável. Assim esperamos.
Números da Bordallo
4 800 peças produzidas por dia
180 trabalhadores na fábrica
€4,8 milhões de faturação anual
180 minutos é o que demora a fazer um Zé-Povinho
22% Taxa de crescimento de 2014 para 2015
15 a 20% Taxa de crescimento esperado para 2016