Finalmente, há um sucessor para A Vida de Pi. Vencedor do Man Booker Prize 2002 com o romance que vendeu 12 milhões de exemplares, já transformado em filme, Yann Martel sobreviveu ao sucesso mundial: “Eu vivo em Saskatoon, em Saskatchewan, no Canadá, no meio do nada. 99% dos portugueses não saberiam dizer onde é. A minha vida é muito tranquila. Tenho quatro filhos. Adorei ganhar o prémio, e fiquei grato por tantas pessoas terem ficado ligadas a mim através de A Vida de Pi… Mas voltei à minha vida, fechei a porta e recomecei a escrever: há tantas novas perguntas para responder.” Algumas delas passam pelo romance, As Altas Montanhas de Portugal, em que o autor cruza três histórias, místicas q.b., no território português.
Fez a peregrinação pelas “Altas Montanhas de Portugal” aqui descrita, vivida por Tomás ao volante de um carro, no encalço do tesouro que pode mudar a Igreja Católica?
Sim. Mas primeiro quero pedir desculpa pelos erros de português e brasileirismos do livro, e que serão corrigidos na segunda edição. [nota da editora: “Os erros de português e brasileirismos mencionados por Yann Martel referem-se naturalmente à edição do livro em língua inglesa. Todas essas ocorrências foram devidamente corrigidas na edição portuguesa publicada pela Editorial Presença].Não me apercebi, por exemplo, que em português não se chama por “Senhora”. As complexidades do vosso idioma deixaram-me perplexo, percebi que não sou suficientemente inteligente para ser português [risos]. Voltando à questão, não há altas montanhas em Portugal. Mas este foi o primeiro país onde viajei sozinho, aos 20 anos. Apesar de ter vivido muito na Europa (os meus pais eram diplomatas, então destacados em Madrid), essa viagem teve um grande impacto. Impressionou-me ver em Lisboa chineses de Macau, negros de Angola e Moçambique, indianos de Goa, Damão e Diu… Era uma cidade mais cosmopolita do que a Madrid branca dos anos 80. Fui ao Algarve e terminei a viagem em Trás-os-Montes, nome que me pareceu uma excentricidade – e batizarmos os lugares é o início da história que contamos sobre eles. As Altas Montanhas de Portugal não é tanto sobre geografia, e sim sobre lugares onde queremos estar. São montanhas imaginárias, que escalamos mentalmente. Inspirei-me vagamente na região para escrever o romance: os nomes das aldeias são verdadeiros, mas as igrejas não são todas em Trás-os-Montes nem a geografia é a mesma… Este é um norte português mitificado.
O Portugal deste romance parece oscilar entre o paraíso perdido e o filme neorrealista: pastores de ovelhas, simplórios, multidões ingénuas… Foi essa a realidade que encontrou?
Essa imagem nada tem a ver com Portugal ou com o caráter rural da população. Ao pesquisar sobre os primórdios do automóvel, percebi que as pessoas ficavam mudas de espanto ao vê-lo pela primeira vez. Em 1904 era ainda cedo demais para essa realidade em Portugal e Espanha: não haveria sequer muitos carros a circularem em Lisboa. Este impacto é semelhante ao verificado noutros países europeus: o automóvel era um objeto enorme, ruidoso, veloz, um “dragão com fogo”. Mas, quando eu era jovem, os telefones eram caixas fixas com cabos longos… Os telemóveis surpreenderam-me. A tecnologia nova é sempre desconcertante. Por exemplo, se chegamos a aldeias distantes da Índia numa minivan, as pessoas ainda ficam a observar-nos.
Esta viagem de carro por Trás-os-Montes, em 1904, parece um filme mudo: ritmo imparável, sentido de humor…
O trágico e o cómico partilham qualidades, sobretudo no que respeita às expetativas não cumpridas. Conta-se uma piada, a punch line é uma surpresa, e rimo-nos. Estamos a passear o cão na rua e, de repente, um carro atropela-nos. O pobre Tomás não sabe conduzir e está preso num veículo infernal: este desespero é cómico.
Descreve minuciosamente tanto a mecânica do “bibelô gaulês”, um “Renault de quatro cilindros, obra-prima da engenharia”, como a bizarra autópsia feita pelo médico Eusébio Lozora, em 1938, em Bragança. Quão longe foi na pesquisa?
Adoro pesquisar, é a minha maneira de continuar na escola. Fiz uma pesquisa histórica profunda sobre a indústria automóvel. Assisti também a duas autópsias, li manuais de patologia dos anos 1930, investiguei chimpanzés, calcorreei Lisboa… Por exemplo, a casa de porte senhorial [um palacete na Lapa, depósito exótico de taxidermia] de Martim Augusto Mendes Lobo, tio do protagonista Tomás, é a atual residência do embaixador chinês. E percorri de carro todas as estradas velhas que Tomás usou na viagem de automóvel até Trás-os-Montes.
Apesar da pesquisa, os portugueses não lerão, aqui, um cliché do pequeno país pobre?
Tal como A Vida de Pi não era sobre a Índia, este romance não é sobre Portugal. Situei aí os acontecimentos descritos no romance por uma série de razões. Uma delas é porque o livro aborda uma história abrangente e alegórica sobre a vida de Jesus. Jesus nasceu na Palestina, nas margens do império romano. Portugal está nas margens da Europa. Palestina era um território sem importância do império romano mas teve aí lugar um acontecimento-chave. As Altas Montanhas de Portugal não é um romance sociológico. Há camponeses em todos os países… E estes não são ignorantes, saem para contemplar o carro e um deles até fala no ponto morto – que Tomás desconhece. O meu objetivo não é ser historicamente preciso, ainda que os leitores possam sentir que há clichés. Mas pode escrever que o autor pede desculpa por quaisquer erros ou incompreensões [risos].
Crucifixos, padres, milagres… Qual a origem de tantas referências cristãs?
Os meus antecedentes são completamente não religiosos. Sou do Québec, a província mais secular do Canadá: ninguém vai à igreja, a não ser os idosos. Quando queria entender a vida, eu lia os grandes livros, via as pinturas icónicas nos museus, ouvia “as” músicas. Essas eram as ferramentas com que cresci e me tornei escritor. Mas quando cheguei à Índia, percebi que era demasiado racional, materialista, razoável… Tal como acontece em Portugal, onde não andamos sem tropeçar numa igreja, a presença da religião é forte na Índia. Perante o triunfo da ciência, o fascínio da tecnologia, a ida do homem à Lua, como é que as pessoas ainda acreditam em Deus? Fiquei intrigado. Mas não se pode entender nada se vemos apenas o exterior, a religião homofóbica, o sexismo, o antissemitismo, o patriarcado. Decidi tentar compreender a religião: escrevi A Vida de Pi. Esse pensamento mágico chamado fé tocou-me, de forma semelhante à leitura de um livro – não é real mas contém verdade.
As Altas Montanhas de Portugal é o continuar dessa investigação?
Sim. A primeira parte do livro simboliza o ateísmo [a viagem de Tomás, perdido e sem fé], a segunda aborda o agnosticismo [os encontros do médico legista com o fantasma da sua esposa e com uma viúva que quer guardar-se no corpo do defunto], a terceira parte explora como seria viver com Jesus de Nazaré e ser um dos discípulos [um senador canadiano viúvo adota um chimpanzé, abandona tudo e refugia-se numa aldeia transmontana]. O que é fascinante no cristianismo é que é a única religião em que o deus se torna homem. Jesus simboliza a vida universal. Todos somos como ele: nascemos, crescemos, sofremos, fazemos o nosso melhor, e morremos.
Hoje, podemos ler de forma naïf um livro que aborda a fé?
Sim, não há aí nada naïf. A verdade é sequestrada – vejam-se os idiotas do ISIS e dos talibans… Os muçulmanos fundamentalistas, os judeus fundamentalistas, os cristãos fundamentalistas, sempre estiveram por cá. Estamos apenas mais conscientes disso – e mais zangados. A religião sempre esteve sob a praga dos literais, sejam eles psicóticos abomináveis que usam a violência, sejam eles ateus que rejeitam a filosofia com base em pequenas coisas. Os céticos têm uma leitura superficial da religião: sabem pouco e só veem os clichés e as piadas – uma versão Monty Python da religião.
O missionário Ulisses tem esta epifania: “Não somos anjos caídos, somos símios que ascenderam”. É também um mea culpa do homem branco?
O sofrimento sempre me interessou, está no centro da arte: escrevemos porque sofremos. É a mesma coisa com a religião: esta começa com a morte. O padre Ulisses é um bom exemplo de cristão idealizado, ele procura a perfeição e a aprendizagem através do sofrimento. Ao ver o sofrimento destes animais [quatro chimpanzés], vê finalmente o sofrimentos dos seres humanos [escravos] e rebela-se. Nós partilhamos cerca de 90% do material genético com os chimpanzés; isso quer dizer que se Deus se torna humano, então os chimpanzés tornam-se 90% divinos. Isto é, hoje, muito pertinente: todos os dias crucificamos este planeta através das alterações climáticas, poluição, degradação ambiental… Crucificamos os animais, sejam sapos, abelhas, peixes nos oceanos, ou matanças massivas de vacas. O sofrimento de Jesus quando clama “Meu Deus! Meu Deus, porque me abandonaste?” poderia ser dito pela maioria dos animais.
Mas a sua grande provocação reside num crucifixo diferente, darwinista…
Imaginei que, em 2016, poucos ficariam chocados com a imagem de um chimpanzé num crucifixo. Noutros tempos, seria diferente. A menos que alguns evangélicos norte-americanos me escrevam [a protestar], ou que alguns portugueses objetem, não só à maneira como retrato os camponeses mas também como represento Jesus na cruz, como um chimpanzé, com os braços compridos, o rosto distendido…
Outra cena inesperada é protagonizada pela mulher morta de Eusébio Lozora, que compara a Bíblia aos mistérios de Agatha Christie. Hercule Poirot apóstolo? É um jogo literário a que não resistiu?
Sim, adorei escrever essa ideia. O que Agatha Christie fez, involuntariamente, ecoa o feito de Jesus há dois mil anos: ela tornou a morte aceitável, até divertida. É a autora mais popular de sempre: ninguém vendeu tantos milhões de livros como esta velhinha respeitável e convencional. O seu sucesso deve-se ao facto de ela ter tornado a morte sedutora. E Jesus fez a mesma coisa: não por ser divertido, mas porque ressuscitou. Até então, a morte era um final. Ele vem dizer que a morte é temporária, é apenas uma linha que se atravessa para começar o verdadeiro jogo – a vida após a morte. Daí a sua popularidade, por assim dizer. Ambos fizeram à morte algo que ainda não tinha sido feito antes.
Definem-no como o escritor das viagens espirituais. Vê-se assim?
Bem, podemos dizer que A Vida de Pi é espiritual, tal como As Altas Montanhas de Portugal. Eu acredito que a arte tem de entreter: não há razões para ler um livro aborrecido. Mas tem que ser mais do que um divertimento. A grande literatura muda-nos. Quando se pensa no movimento de emancipação nos EUA, A Cabana do Pai Tomás [de Harriet Beecher Stowe, publicado em 1852] mudou a maneira como se olhava para a escravatura. Os livros, sobretudo os romances, mudam vidas. Não vejo qual é o sentido de passar anos a escrever um livro apenas para ser irreverente, irónico ou cínico. Eu acredito em construir catedrais.
Porque convoca os animais para os romances, como é o caso do misterioso rinoceronte-ibérico em As Altas Montanhas?
Os animais são versáteis. São como uma tela em branco, onde projetamos muitas coisas. Isso fá-los muito úteis para os escritores. Hoje, só estão presentes na religião ou nos livros infantis, porque ambos dão o sentido do maravilhoso. É por isso que uso animais nos meus romances. Na terceira parte deste romance, os leitores já estão habituados aos chimpanzés. E eu queria uma última manifestação do maravilhoso, o rinoceronte-ibérico, que os fizesse perguntar-se, perplexos, a coçar a cabeça: “Mas o que é isto?”