As causas planetárias são a especialidade da canadiana Naomi Klein, 45 anos. Autora, ensaísta e ativista, tem atacado a globalização através de best-sellers, como No Logo (1999), dissecação da reralidade por trás das grandes marcas mundiais. Agora, lançou um impressionante manifesto pela causa ambiental, Tudo Pode Mudar (Editorial Presença), em que aponta baterias ao capitalismo: “O atual sistema económico está a impedir-nos de atuar numa solução para as alterações climáticas.” Nesta conversa, defende que o mundo distópico da ficção científica já chegou – nós é que andamos distraídos.
Fala de uma “amnésia coletiva” no início de Tudo Pode Mudar. Que despertador a fez comprometer-se com a causa ambiental?
O despertar aconteceu quando estava a escrever o livro anterior, A Doutrina do Choque [Smartbook, 2009]. Este ia ser apenas sobre choques militares (o Iraque e o 11 de Setembro) e económicos, mas via cada vez mais exemplos de estratégias em que as crises e os desastres naturais eram usados para restruturar as sociedades de acordo com os interesses empresariais. O meu verdadeiro despertar foi o furacão Katrina – foi um caso exemplar de doutrina do choque.
Os temas estão ligados?
Vejo Tudo Pode Mudar como uma sequela de A Doutrina do Choque, com a visão assustadora de um futuro em que o sistema produz cada vez mais choques. Choques económicos, porque regulamos os mercados financeiros – isso é sentido em Portugal. Choques militares porque travamos guerras, muito por causa dos combustíveis fósseis, pelas quais enfrentamos consequências – como vemos na Síria. E choques climáticos – o futuro que criámos é de grande instabilidade climática. Cada choque cria uma sociedade cada vez mais dividida, entre um pequeno grupo de vencedores e cada vez mais pessoas que perdem. Antes, eu deixava as mudanças climáticas para os ambientalistas. Pensava: “Estou focada em questões mais importantes como guerras e privações económicas.” O Katrina ensinou-me que tudo está ligado. E que se nos mantivermos nesta estrada todas estas crises vão piorar.
A famosa frase “para o mal triunfar, basta que os bons homens nada façam” resume a atitude dominante?
É complicado. Não acredito que esta seja uma questão de sermos todos maus, ou egoístas. Houve momentos em que a Humanidade se juntou para lidar com esta crise: nos anos 1990, com a assinatura do Protocolo de Quioto, em 2009 com [a Cimeira de] Copenhaga… Mas não podemos falar do nosso falhanço sem olhar para aqueles que quiseram que falhássemos: as empresas de combustíveis fósseis. Veja-se a investigação em curso à Exxon. Sabemos agora que a empresa fez investigação de ponta sobre o aquecimento global nas décadas de 1970 e 1980, e que a omitiu e manipulou nos anos 1990 e 2000: tinham think tanks que espalharam desinformação, despejaram dinheiro em campanhas de políticos norte-americanos que obstruíram qualquer tentativa de atuação…
Portanto, não somos todos culpados da mesma maneira?
Não, e é importante dizê-lo. Todos partilhamos alguma responsabilidade, é claro. Mas essa é uma perspetiva enfraquecedora. Não acredito que sejamos tão culpados como a Exxon. Também defendo que há um outro problema: temos um sistema económico que posiciona o ambiente contra a economia. Quando há uma crise económica, é constantemente dito às pessoas que não se podem dar ao luxo de se preocuparem com o ambiente. É uma mensagem que tem crescido no Sul da Europa desde 2008. As políticas económicas adotadas nesses países têm sublinhado que numa época de crise económica as pessoas não podem preocupar-se com as alterações climáticas.
A ideia defendida em Tudo Pode Mudar é a de que o verdadeiro problema é o capitalismo e não as emissões de gases de estufa. Mas o público tem sido doutrinado para culpar os desperdícios, os combustíveis, as irresponsabilidades humanas. Como atravessa esta ponte?
A questão não é dizer que a poluição não é o problema. O meu livro olha para o sistema que encorajou essa poluição, e que tornou tão difícil aos nossos governos pará-la – embora tenhamos toda a informação e tecnologia necessárias para o fazer. Eu defendo é que as alterações climáticas são um caso de péssimo timing: tornaram-se uma questão de política pública no apogeu do projeto neoliberal. À medida que os governos estavam a tentar encontrar um plano para decidir o que fazer para lidar com as alterações climáticas, estava-se a criar a Organização Mundial do Comércio [fundada em 1995], a liberalizar as leis, a desregular muitas regras do comportamento empresarial, a despedir reguladores porque se reviam em baixa as previsões económicas, a privatizar as nossas redes de eletricidade e de água. Não é dizer que a poluição não é o problema; claro que é. Mas há que entender como o atual sistema está a impedir-nos de atuar.
Para resolver o clima, é preciso quebrar o molde capitalista?
Precisamos de uma mudança séria de sistema. E creio que as pessoas compreendem isso – mesmo sem as alterações climáticas. Estamos a meio de uma campanha eleitoral histórica nos EUA. Temos candidatos insurgentes, como é o caso do Bernie Sanders e até do Donald Trump, que baseiam as campanhas na assunção de que o sistema está quebrado. A diferença entre eles é que Trump diz: “Podem confiar em mim, eu sou milionário.” E Bernie Sanders diz: “Bem, os milionários é que são o problema.” Se as alterações climáticas fossem a única razão porque precisamos de uma mudança de sistema, creio que não tínhamos hipótese. Mas as pessoas veem isso por causa da desigualdade, dos níveis elevados de austeridade… O ensaio de Thomas Piketty [O Capital no século XXI, 2013] tornou isso claro. Lidamos com uma crise de sobreposição de sistemas. E o papel do dinheiro empresarial e das políticas, sobretudo nos EUA, é uma gigantesca falha sistémica. Mas há razões para otimismo: há uma enorme consciência de que essa mudança é necessária.
Revoluções, ideologias, fé… Este ensaio ambiental é diferente dos outros.
Bem, esta não é uma mensagem simples, e não estamos a viver tempos de soluções fáceis. A maior parte dos livros sobre o ambiente contam-nos coisas assustadoras, recomendam-nos que troquemos as lâmpadas dos candeeiros, e dizem que resolvemos tudo com soluções técnicas. Mas esse modelo falhou.
Como avalia a procura de soluções por parte dos políticos?
As soluções terão de ser alinhadas com a ciência, pois precisamos de reduções drásticas nas emissões de gases de efeito de estufa. Precisamos de as cortar em dez por cento ao ano, se fizermos fé no que os nossos políticos prometeram em Paris [COP21 – Cimeira de Paris, realizada em dezembro de 2015, onde 195 países assinaram um novo acordo ambiental para o planeta]. O que aconteceu aí é um retrato vívido do que descrevo no livro: os governos reuniram-se, comprometeram-se a manter [a subida da temperatura] nos 1,5 graus celsius. Mas o plano que todos levaram a Paris não bate certo com esses valores, mas sim com mais do dobro disso, 4 ou 5 graus. Portanto, os políticos estão a dizer abertamente que sabem o que é necessário fazer, e que estão dispostos a fazer apenas metade. É como admitirem que não são capazes de fazer o que é necessário.
No livro, conta a perturbadora epifania de alguém que diz, pós-encontros com líderes na Cimeira de Copenhaga: “Ninguém nos virá salvar.” Estamos sós?
Creio que as pessoas vieram a Paris com os olhos mais abertos. Já sabíamos que o acordo não seria suficiente. O movimento ambiental sentiu menos a síndrome do salvador [risos]. Em Copenhaga, havia quase uma fé religiosa numa solução…
Escreve que “os políticos não são os únicos com poder para declarar uma crise, movimentos de pessoas comuns também o podem fazer”. E dá os exemplos dos movimentos dos direitos civis nos EUA, do anti-apartheid… Onde é que está o movimento de massas pró-ambiente?
As pessoas estão a ficar mais organizadas. O movimento ligado ao clima teve um enorme crescimento nos EUA, e grande impacto na administração Obama. No Canadá livrámo-nos de um terrível governo que praticava a negação. Na verdade, onde se vê menos ação é no Sul da Europa. Se as pessoas estão a tentar colocar comida na mesa, não vão estar preocupadas com o futuro do clima. A menos que tenham líderes políticos que expliquem como a reação às alterações climáticas pode criar empregos (que ajudam a colocar comida na mesa) e uma sociedade mais justa. É isso que muitos partidos progressistas na Europa do Sul não fizeram: não conseguiram reunir ambas as crises, económica e ambiental, num mesmo discurso coeso e realista.
Propõe também uma espécie de “choque das pessoas”, um “empowerment” a partir de baixo. Estas não replicarão os comportamentos e decisões das elites?
No Michigan, os habitantes estão a ser envenenados porque a crise económica levou à troca do sistema de água usado. Numa situação de escassez de água, isto vai acontecer cada vez mais. Não sei como é que esse poder a partir de baixo se vai manifestar. A única certeza que tenho é que, se não tentarmos, acabaremos na doutrina de choque do clima. E esse é um futuro muito assustador. O atual sistema responderá às alterações climáticas como tem respondido a todas as crises: com mais austeridade, privatizações, desigualdade, maior controlo das empresas… É uma visão semelhante aos futuros imaginados na ficção científica, em Mad Max ou em The Hunger Games – Os Jogos da Fome: um pequeno grupo de vencedores e muitos perdedores…
Refere teses científicas que falam num fim da civilização. A democracia pode colapsar devido às alterações climáticas?
Em muitas partes do mundo, esse mundo já chegou. As promessas de campanha de Donald Trump são ficção científica. São Os Filhos do Homem [filme realizado por Alfonso Cuarón, em 2006, que mostra um mundo futuro, dividido por conflitos, à beira da extinção pois as mulheres tornaram-se inférteis]. Alfonso Cuarón, meu amigo pessoal, e coprodutor do documentário [This Changes Everything, realizado por Avi Lewis, a partir do livro de Klein], diz que o futuro já está aqui, só que distribuído de forma desigual: já chegou ao México, ainda não chegou a toda a América do Norte, mas sabemos que vem aí…
Os países pobres, que estão a sofrer os efeitos do aquecimento global, devem ser compensados pelas nações mais ricas pelos danos causados?
Não só pelas nações mais ricas, mas também pelas grandes empresas como a Exxon, a Chevron… As companhias privadas deixaram detritos massivos em áreas como o Delta do Níger, o Equador, o Amazonas, e recusam-se a fazer a limpeza. As alterações climáticas têm muito a ver com as grandes asneiras feitas por essas companhias. E agora sabemos que eles sabiam disso, já nas décadas de 1970 e 1980. Essa descoberta é um gigantesco e decisivo volte-face: torna este caso semelhante ao das grandes tabaqueiras que investigaram as ligações entre fumar e ter cancro, e que suprimiram a pesquisa e espalharam desinformação, e que tiveram que pagar grandes multas para ajudar a pagar o impacto nos custos da saúde. E acho que não tentámos que os poluidores pagassem pelas alterações climáticas.
Se Donald Trump ganhar as eleições norte-americanas, uma grande parte desta batalha estará perdida?
Sim… [suspira]. Dizemos ironicamente que nem toda a gente deveria poder votar pois todos temos que lidar com o resultado, mas nesta eleição isso é particularmente verdadeiro. Porque as decisões sobre as alterações climáticas nos próximos cinco anos vão moldar o futuro da Humanidade.
As Nações Unidas estão a perder energia para combater o problema?
As Nações Unidas são apenas tão poderosas quanto os governos que lá estão. Por isso têm sido tão fracas: os governos mais poderosos não têm querido, no que respeita ao clima, que as Nações Unidas sejam poderosas.
O prazo limite para reverter a situação já foi ultrapassado?
A razão pela qual há um grande foco em projetos estruturais à volta do mundo – novos pipelines, novas instalações de exportação, novos espaços de armazenagem – é porque… Quando construímos estes grandes objetos, encerramo-nos em modelos de negócio para décadas futuras. A boa notícia é que o preço do petróleo e do gás têm descido há mais de 18 meses, o que quer dizer que o mercado está a ficar desconfiado desses projetos. Embora os preços baixos encorajem o consumo, eles também criam melhores condições para impor um imposto sobre o carbono. Isso comprou-nos algum tempo.
Depois de ler este livro, muitos questionar-se-ão: para quê continuar a separar papéis e plásticos se tudo depende de mãos maiores. O que lhes diria?
A verdade é que fazer apenas esses gestos de reciclagem não é suficiente. Este problema é grande demais para ser resolvido pelas ações individuais. Há que fazer ações coletivas – aquilo que fazemos enquanto cidadãos, e não apenas consumidores. E se não as conseguirmos fazer, então merecemos sentir-nos desesperados.