Talvez, no próximo dia 28 de fevereiro, Leonardo DiCaprio suba ao palco do Dolby Theatre, em Los Angeles, e com toda a propriedade, declare: “Sou o rei do mundo!”, tal como o fez a sua personagem Jack, há 19 anos, em Titanic, naquela que continua a ser a sua mais famosa representação. Seria sinal que, aos 41 anos, finalmente ganhou um Oscar para melhor ator. Coisa que já esteve quatro vezes para acontecer e acabou sempre adiada. O Globo de Ouro que recebeu no passado domingo coloca-o definitivamente à frente na lista de favoritos. E a questão passa a ser: o que ele fez para aqui chegar? Ou melhor, o que é que não fez? Basta compararmos a cara lavada, um tanto ou quanto feminina, de Jack em Titanic, com a barba selvagem num corpo cheio de marcas de Hugh Glass, em O Renascido, para nos apercebermos da metamorfose de DiCaprio. Até a sua voz cristalina foi substituída por um murmúrio afónico, sendo que grande parte do filme DiCaprio passa-o a arfar. Isto diz muito da psicologia dos jurados: embora Hollywood se alimente do glamour das suas caras bonitas, não lhes dá assim tantos Oscars.
A não ser, claro, quando o ator mostra que pode transformar-se. Que é como quem diz: antes monstro do que bela.
Para se preparar para este exigente papel, Leonardo DiCaprio viveu meses em grande desconforto e aprendeu técnicas de sobrevivência. A sua entrega foi total, e isso deve impressionar os elementos da Academia, particularmente sensíveis aos esforços físicos dos atores (há vários exemplos de vencedores que ganharam ou perderam peso para melhor desempenharem os seus papéis) e não consta que o seu concorrente Matt Damon tenha passado um dia que seja no espaço para estudar o seu papel em Perdido em Marte.
Embora a nomeação para os Oscars seja praticamente certa à hora a que escrevemos este texto ainda não são conhecidos os candidatos, mas seria escandaloso se tal não acontecesse a estatueta não está garantida. Até porque a Academia oscila entre uma irritante previsibilidade e surpresas constrangedoras. E há mais candidatos fortes. Além de Matt Damon, que, já se sabe, é uma das figuras mais queridas de Hollywood, há Eddy Redmaine, que já havia sido nomeado o ano passado por A Teoria de Tudo, no exigente papel de Stephen Hawking, e tem agora uma performance destacável em A Rapariga Dinamarquesa, onde faz de transexual (o que também poderá impressionar a Academia).
UMA ESCOLHA ARRISCADA
A escolha de Leonardo DiCaprio para o papel de Hugh Glass não é nada óbvia. Facilmente qualquer um se lembraria de uma dezena de atores a quem mais facilmente entregaria esse papel. De Daniel Day-Lewis a Javier Bardem. Aliás, antes do filme ser entregue ao realizador Alejandro Iñárritu, foram sondados para o papel Samuel L. Jackson e Christian Bale. DiCaprio não é um duro, não foi assim que o star system americano o desenhou. Ao aceitar este papel, ele está a destruir e a questionar a sua própria imagem e identidade enquanto ator. É como ver Chuck Norris num musical, ou Carlos do Carmo numa banda de heavy metal. Alejandro Iñárritu arriscou o erro de casting e safou-se com êxito. Beneficiando ainda de um efeito surpresa e do carisma de DiCaprio, que revelou toda a sua versatilidade. Sem dúvida que com outro ator não seria o mesmo filme. E também é verdade que Iñárritu já deu provas de ser perspicaz no casting: Birdman, que venceu os Oscars no ano passado, tinha dois atores extraordinários: Michael Caine e Edward Norton.
Em O Renascido, o antagonista de Di-Caprio é Tom Hardy (esteve para ser Sean Penn). Mas tudo está feito paraDiCaprio brilhar, isto apesar do realizador mexicano não abdicar do seu próprio estilo, que passa por um movimento livre da câmara. Ou seja, apesar de ser um filme com um orçamento superior a 135 milhões de dólares, esteticamente trata-se de cinema independente. Os gastos aumentaram significativamente, não só pelo cachet deDiCaprio, mas também pela insistência de Iñárritu em filmar com luz natural (primeiro no Canadá, depois na Argentina). Formalmente, O Renascido está algures entre Estes País não É para Velhos, dos irmãos Coen, e A Árvore da Vida, de Terrence Malick.
UM WESTERN SEM ‘SALOONS’
O Renascido é baseado na história verdadeira de Hugh Glass, explorador americano do século XVIII que sobreviveu ao ataque de um urso e, moribundo, foi abandonado à sua sorte pelos seus companheiros de viagem.
A personagem de Glass é uma lenda semelhante à de David Crockett ou Billy the Kid, faz parte da cultura popular americana com um sem-número de variantes. Já havia sido adaptada ao cinema por John Huston, em 1971, em Man in the Wilderness, trocando o nome de Hugh para Zachary Bass (interpretado por Richard Harris).
Iñárritu adapta a versão da história contada no romance de Michael Panke, sobre a qual fez algumas alterações significativas. Fez dela uma espécie de pré-western realista. O western, diga-se, é um género em decadência para os lados de Hollywood desde que os índios foram oficialmente declarados vítimas indefesas e os cowboys homens broncos. Passou a ser politicamente incorreto e socialmente inaceitável ter como heróis aqueles que matam o povo indígena… Se bem que O Renascido não é um western no sentido mais clássico, a projeção deste filme poderá servir, de certa forma, para revitalizar o género. A sua estética realista confronta-nos com a imagem estereotipada de outros filmes, como acontece por exemplo no cenário do bar/saloon, mais parecido com uma espécie de taberna medieval. Não há linhas de comboio, nem xerifes de estrela ao peito. Também não há duelos de revólver, até porque as pistolas ainda eram objetos demasiado toscos e pouco manejáveis. Mas há grandes cenas. A principal, a todos os níveis, é a do ataque do urso. E pode assegurar-se que nenhum animal foi ferido ou maltratado na rodagem, porque nenhum animal foi utilizado. Entre todas as exigências de realismo (como a da luz natural), Iñárritu cedeu neste ponto e DiCaprio contracenou com um urso… digital, mas nem por isso menos realista e assustador.
O Renascido é, naturalmente, um grande candidato aos Oscars em várias categorias. Leva-nos para um Oeste de terra farta, planícies de gelo, dominado por índios, ainda sem tempo nem espaço para o estabelecimento de colonos. É uma terra selvagem. Selvagem pela brutalidade da natureza, mas também pela natureza dos homens que a habitam. Um filme que fará de DiCaprio “o rei do mundo”, e Iñárritu, que demorou mais de cinco anos a prepará-lo, um dos autores mais requisitados de Hollywood.
E as nomeações foram…
em mais de duas décadas de carreira Leonardo DiCaprio foi nomeado cinco vezes (quatro para categorias de representação, uma como produtor) para um Oscar. Não venceu nenhum
‘What’s Eating Gilbert’ 1993
Com apenas 19 anos foi nomeado para melhor ator secundário, no papel de Arnie Grape, um miúdo autista
‘O Aviador’ 2004
Na sua segunda colaboração com Martin Scorsese, desempenha o papel de Howard Hughes, o célebre realizador e aviador
‘Diamantes de Sangue’ 2006
História de sobrevivência na Serra Leoa, onde DiCaprio se transforma em protagonista do tráfico de diamantes em cenário de guerra
‘O Lobo de Wall Street’ 2008
História de um corretor da bolsa com uma ascendência e queda fulminantes, produzida pelo próprio DiCaprio e realizada por Scorsese