A casa onde nasceu, um ponto branco em Ponta Delgada, nos Açores, era cheia de livros. Estantes completamente cobertas de lombadas, de papel cosido, de palavras de todo o género, subiam até ao teto. Hoje, Renata Correia Botelho (1977) tem livros seus para arrumar nas estantes. Desde 2000, publicou quatro livros de poemas: Avulsos por Causa (edição de autor), 21 Haiku com Asas, Urbano e Cabras (Galeria 111, uma co-autoria com o pai, o poeta Emanuel Correia Botelho e o pintor Urabno), Um Circo no Nevoeiro e small song (ambos editados na Averno). Uma produção com voz coerente, atenta aos afectos, aos elementos da natureza, ao quotidiano. Aliás, muitos dos seus poemas são dedicados. “Sou uma pessoa medrosa, não tenho muita confiança no futuro”, explica. “Não sei quanto tempo ainda me será dado, e gosto de deixar dito às pessoas quanto as amo. Podemos fazê-lo de muitas formas, e uma delas é a escrita.”
Sobre a sua poesia, diz que esta nunca será de intervenção, ou com caráter social: “Até gostaria de a fazer, mas não consigo. Não são temas que me interessem o suficiente para os fundir na minha escrita. Interessam-me os afetos, procuro a doçura e a beleza das coisas à nossa volta.”
Foram os afetos que a fizeram sair da ilha e rumar ao Porto, cidade de que gostava e para onde foi estudar Psicologia – aliás, em Março passado, despediu-se, coisa temerária, deixando para trás uma década de trabalho em instituições ligadas à saúde mental. Muito antes, deixou igualmente o Porto, para não enfrentar igualmente a geografia de amores aí mortos. Mas foi na Invicta que começou a “escrevinhar algumas coisas” que o pai e os amigos a incentivaram a continuar.
Hoje, diz que não escreve por necessidade. “Passo muito tempo sem escrever, nem sequer um apontamento na ponta de um caderno. Escrevo outras coisas. Mas pode acontecer algo que sirva de detonador e atrás de um poema vêm cinco, seis, sete… Depois, há todo um processo de limpeza: gosto de deixar a madeira, a matéria à vista”, descreve.
Ligações fortes
As ligações fortes com a literatura não passam apenas pela produção poética própria. “Tenho uma ligação visceral e absurda à Marguerite Yourcenar. É uma escritora que me comove profundamente, na qual encontro passagens de uma beleza que nunca conseguirei ser eu a dizê-la. Era uma sábia, uma mestre.” Por estes dias, afadiga-se até numa tradução da autora francesa. Mas uma outra presença feminina marcou-lhe a memória e os poemas: a cantora Lhasa de Sela [norte-americana de ascendência mexicana], que viria a ser a personagens e destinatária do seu último livro, small song. “O meu contacto com a Lhasa de Sela é antigo. Tive a sorte de a ouvir, de forma casual, numa loja de discos do Porto que já não existe. Foi um encontro muito forte.”, conta Renata. “A voz dela acompanhou-me ao longo da minha vida. Era quase a terceira voz da casa [onde a autora vivia com o então companheiro] e das casas seguintes onde vivi. A morte dela [em 2010, aos 37 anos, vítima de cancro de mama] foi um rude golpe. Acabei por ter necessidade de não só de a invocar como de refazer alguns passos dela. Fui ao encontro da sua vida.”
Neste momento, Renata tem uma forte amizade com Skie, irmã de Lhasa. “A vida dá voltas misteriosas e acabei por ficar ligada a uma família que, não sendo a minha, quase sinto com minha, pela fortíssima ligação que tinha com aquela voz”, explica. Que a autora nunca viu/ouviu ao vivo. “Fui egoísta, não quis estar no meio de centenas de pessoas que também cantavam a sua música.”
Salvam-na os afetos. E a poesia? “A poesia, e as outras artes, pode salvar-nos de muita coisa. A palavra é uma âncora. Imagino que poderia viver numa situação de dificuldade. Tenho muitos livros para ler, espero nunca os ter de vender. São milhares de livros que não li, e que são uma espécie de garantia de vida. Mesmo que tudo possa ruir à nossa volta, há livros. Isso é uma segurança.”
0 vento agita as sombras
na minha mão, lança-me
vultos, um nome em chamas, versos
afiados contra os dedos.
sempre pressenti a distância mínima
entre o poema e o medo
de não saber regressar a casa.
(in Um Circo no Nevoeiro)