Em 1903, Rafael Bordalo Pinheiro fez aquilo que fazia regularmente, pegou num objeto do quotidiano, aumentou-o e alterou-lhe as funções. No caso, desenhou uma pandeireta gigante, e nos pratos metálicos colocou um par de bailarinos. Seria um coreto desmontável a colocar num local junto aos Restauradores, e decorado a amarelo e vermelho, as cores de Espanha, para receber o rei Afonso XIII numa visita oficial a Portugal. O desenho ganhou forma, associado a um arraial ao longo da Avenida da Liberdade. No fim das festas, foi desmontado. Mas houve outro que não passou do papel. “Um açafate com flores. Mais uma vez, pegou num objeto comum e aumentou-lhe a escala. Foi o primeiro projeto do coreto para as festas desenhado por Bordalo Pinheiro e do qual resta uma aguarela que está no Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa”, diz Pedro Bebiano Braga, historiador, autor de um dos raros estudos sobre coretos que existe em Portugal, Coretos em Lisboa, 1790-1990, uma monografia publicada juntamente com Eunice Relvas.
O livro saiu em 1991 e deste então não houve qualquer atualização ou estudo que o complementasse. “Não se justifica”, afirma o atual investigador do Museu Bordalo Pinheiro, alegando que nos últimos 30 anos as novidades “neste tipo de móveis urbanos foram quase nulas”, à exceção da cúpula recentemente colocada no coreto de Carnide.
É dessa forma que Pedro Bebiano Braga se refere aos coretos, “mobiliário” que foi o “motor de uma sociabilidade, um grande palco público, com uma importância muito maior do que imaginamos e do que a História lhes tem atribuído”, refere este especialista em História de Arte, que começou a interessar-se por coretos quase por acaso. “Trabalhava então no Gabinete de Estudos Olisiponenses e pediram-me que fizesse um levantamento sobre os coretos. Percebi que não era apenas mobiliário decorativo, mas estava ligado à história do urbanismo, ao modo como a cidade era vivida por quem a habitava. Interessei-me pelo tema e decidi dar continuidade ao estudo.” A monografia que saiu em 1991 foi o resultado dessa investigação, e mais tarde publicava uma tese de mestrado sobre equipamentos urbanos em que os coretos ocupavam um capítulo.
Com os candeeiros, chafarizes, bebedouros, bancos, marcos do correio e quiosques, o coreto representa e “alimenta” uma rede social. “Em finais do século XIX e início do XX, eles estavam no centro de praças e de jardins, a programação dos coretos em dias de festa e aos fins de semana vinha nos jornais e as pessoas que não tinham meios para comprar bilhetes para o teatro de ópera ou de revista iam ouvir música, sentadas no bancos, ou em cadeiras que se alugavam para o efeito, compravam refrescos, uma orchata ou um capilé nos quiosques, faziam funcionar a cidade”, contextualiza Bebiano Braga, referindo um repertório que continha muitas aberturas das óperas de Verdi que as pessoas apreendiam de cor. Em coretos fixos ou móveis, que depois as cidades mais pequenas e as vilas imitavam. “Nesse tempo, o coreto é um mobiliário que vai marcar a afirmação de todas as vilas, um símbolo de cosmopolitismo”, que geralmente era construído num lugar central, junto da igreja ou na praça principal.
Com o crescimento das cidades, a simbologia do coreto alterou-se e não tardou que passasse a ser considerado um símbolo de provincianismo. Muitos foram destruídos e na segunda metade do século XX assiste-se a uma degradação deste património. “Começou por ser o aumento do ruído, do trânsito, logo no início do século. Não se consegue ouvir música com o ruído à volta de uma praça”, justifica, lembrando que o coreto fixo mais antigo de Lisboa teve de sair do antigo Passeio Público para o Jardim da Estrela, onde ainda está. Bebiano Braga fala ainda da vocação política assumida por alguns destes equipamentos. Como o dos Olivais, “com uma tradição republicana”, e acrescenta: “Nos ensaios da banda filarmónica local, faziam-se encontros e produzia-se propaganda republicana. Isto aconteceu em muitas outras localidades no fim da monarquia.”
Novidades no horizonte
Entretanto, vieram os modos de reprodução musical, outras formas de escutar música e logo no início do século XX houve quem se preocupasse com as condições acústicas dos coretos. “Antes da mudança para lá do coreto da Avenida – que ocorreu na década de trinta –, houve um projeto de construir um coreto em forma de concha”, um pouco à semelhança do que existe ainda hoje nos jardins do Palácio de Cristal, no Porto. E de muitos dos que têm vindo a surgir em muitas cidades da Europa e dos Estados Unidos”, como refere ainda Bebiano Braga, lamentando que um movimento semelhante não esteja a acontecer por cá, além de uma programação que existe e “demonstra que estes equipamentos podem ter uma função no século XXI, seja para jazz, performances, pequenas representações, marionetas”.
E ressurgem, argumenta, mais uma vez pela alteração dos modos de socialização urbana. “As pessoas voltaram a valorizar a rua. Talvez por uma maior sensibilidade ambiental. O coreto continua a fazer sentido num jardim, num parque, à beira-mar. Alguns estão a ser recuperados, voltaram a ter programação regular. Mas este interesse está também ligado a algum revivalismo ou saudosismo, ao que se pode chamar o comércio da saudade, com a recuperação dos produtos que os nossos avós usavam, e a uma ideia de ser português, uma fuga à ideia de globalização, uma coisa identitária que quase nunca tem a ver com o nacionalismo. É antes uma reação a uniformização associada a uma certa qualidade de vida.”